Transcrição de palestra dada em dezembro 2021. Link para a gravação original: A farsa da felicidade e do sofrimento
Link para a palestra do Ajahn Chah mencionada no texto: Duas pontas da mesma cobra
Um dos aspectos mais interessantes do ensinamento do Buddha – pelo menos em um nível mais profundo – e também o que mais chama atenção para as pessoas, embora em um nível mais superficial, é a questão da felicidade. O budismo ensina o caminho para felicidade, mas, conforme você pratica, você vai aprendendo mais, vai aprendendo sobre si mesmo, aprendendo mais sobre o sofrimento, chega uma hora que você descobre que, na verdade, felicidade apenas é aquilo que precede o sofrimento, ela é apenas um estágio inicial de sofrimento. Pelo menos a felicidade mundana, que é baseada em fenômenos condicionados, fenômenos impermanentes, estímulos sensoriais, fabricações mentais: todos esses são felicidades não duradouras, insustentáveis. Às vezes, até a felicidade que faz parte do que é chamado de algo bom, algo saudável, mesmo a felicidade que vem da bondade, é algo impermanente e ela cria as condições para o sofrimento vir em seguida.
Uma coisa interessante de se observar é – quando se consegue enxergar isso de maneira clara – como é que funciona lá dentro da mente. Você vê que, na verdade, as pessoas sentem prazer e bem-estar e então elas sentem deleite. Quando elas sentem deleite elas se apegam. Quando elas se apegam, elas têm aversão (pelo não-deleite). Quando elas têm aversão, elas sofrem quando as coisas mudam. Elas têm apego pelo jeito como as coisas são agora e aí elas naturalmente têm aversão pelo que vem em seguida. Então, não importa muito o que vem em seguida, é sempre sofrimento. Porque o que eu gosto é o que está aqui agora.
Não importa o que vem em seguida, vai ser sofrimento; mesmo que não mude nada externamente, ainda assim, a pessoa tem um limite de quanto tempo consegue extrair prazer de uma experiência única, de uma mesma experiência. Após um tempo você não consegue mais sentir prazer naquilo. Então aquela experiência antes prazerosa, vira monótona, de monótona vira irritante; mesmo que nada mude, você muda, sua capacidade de sentir prazer muda. É basicamente uma guerra perdida porque quando você se apega pelo prazer do aqui e agora, do que está acontecendo aqui e agora, não importa o que vem em seguida, sempre vai ser desprazeroso, porque não é o que está aqui e agora.
Notando que o aqui e agora significa tanto as condições como a sua capacidade de experienciar aquilo, mesmo que as condições não mudem, sua capacidade de experienciar aquilo muda; mesmo que surja um outro prazer – um prazer estava presente e o que vem em seguida é um tipo diferente de prazer – mas você só postergou um pouco esse assunto, você não resolveu o problema, você só adiou um pouco. Que nem quando.. sei lá… antigamente tinha telefone com ficha, né… quando ia acabar a ficha você colocava uma outra ficha, você conseguia falar mais alguns minutos, mas não resolvia o problema, vai acabar também essa ficha, aí você bota mais uma, aí você fala um pouco mais, mas não resolveu o problema, você só está empurrando com a barriga, cedo ou tarde vai acabar os seus créditos, e aí vai cair a ligação.
Então os prazeres sensoriais, os prazeres que são baseados em fenômenos condicionados, são sempre assim: eles têm um prazo de validade e inevitavelmente culminam em sofrimento. Pode demorar mais, pode demorar menos, mas eventualmente aquilo culmina em sofrimento. E mesmo que você consiga comprar um pouquinho de crédito para postergar um pouco mais esse sofrimento, trocando de um prazer para outro, ainda assim é insustentável.
Por isso que Ajahn Chah dizia… ele dizia que é como se fossem dois lados, duas pontas de uma mesma cobra. Se você pegar a ponta do rabo, é cobra; não é só a ponta da cabeça que é cobra. É que a cabeça tem as presas, tem os olhos da cobra – são assustadores – tem os dentes da cobra, tem a língua da cobra, tudo assustador! Dá medo! Mas o rabo da cobra não tem nada, é uma coisa lisa, sem nada de especial. Então você fala: “O rabo da cobra é bom, a cabeça da cobra é ruim”, mas na verdade não tem cobra sem cabeça. Aquilo que você diz que é bom, depende do que é ruim para existir. O rabo que é liso e não tem nenhuma ameaça só existe graças à cabeça. Sem a cabeça não tem rabo. Ambos estão conectados, ambos são parte de uma mesma cobra. Não importa se é rabo ou cabeça, o bicho que você está pegando chama-se “cobra”.
Então, o Buddha dizia: “Não importa se é prazer ou dor, o que você está pegando é sofrimento, dukkha”. Quando perguntavam para o Buddha sobre seu ensinamento, ele dizia: “Eu só ensino dukkha e a cessação de dukkha. A única coisa que existe é dukkha surgindo e dukkha desaparecendo.” É só isso, no que diz respeito a uma pessoa que tem uma experiência mundana. O Buddha tem diferentes níveis de explicações, que nem a gente estava falando hoje a tarde… depende para quem você está falando e o que você está querendo expressar. Essa frase do Buddha que diz: “Só existe dukkha surgindo e dukkha cessando” – sofrimento surgindo e sofrimento desaparecendo. Ele falava assim às vezes, mas por outro lado também tem suttas em que ele diz aos monges: “Não ensinem, não declarem que não existe prazer, que não existe prazer no mundo.” Porque às vezes as pessoas falam: “É tudo sofrimento!”, que nem eu acabei de falar: “Felicidade é apenas um estágio inicial do sofrimento”, mas isso você olhando de um certo ângulo, já se você olhar de um ângulo mais próximo, do ângulo da experiência, é óbvio que existe prazer; tanto que o Buddha dizia: “Se não existisse prazer, as pessoas não iriam ser presas na armadilha do samsara.” É graças à existência do prazer que as pessoas ficam presas. Então, se você falar de um certo ponto de vista, querendo expressar um certo aspecto dessa verdade, você pode dizer que só existe sofrimento surgindo e sofrimento desaparecendo; mas se você quiser expressar um outro aspecto do assunto, que é o aspecto em que as pessoas se apegam e ficam presas, então você pode dizer que existe prazer e é a esse prazer que as pessoas se apegam.
Tudo isso remonta àquela ideia de que não existe nenhuma frase, nenhuma ideia que expresse de maneira completa a verdade, qualquer construção verbal e qualquer construção mental são apenas visões parciais. Nem o próprio Buddha conseguiu expressar a coisa de uma maneira única e universal. Como ele dizia, o Dhamma é apenas uma jangada improvisada, todas as explicações, todo o conteúdo do Tipitaka é apenas um punhado de gravetos amarrado com cipó que você usa para atravessar o rio, e tendo atravessado, você joga fora aquela jangada improvisada. O ensinamento no Tipitaka é a mesma coisa, são apenas convenções, são apenas formas de apontar para a verdade. E como a ferramenta é imperfeita, uma ferramenta limitada, não tem como apontar de uma única forma, de uma única tacada. Você tem que expressar de várias formas diferentes para poder dar uma ideia do todo. Às vezes as formas diferentes de expressar acabam dando a impressão de contradição. O Buddha fala: “Só existe sofrimento, mas por outro lado existe prazer, mas só existe sofrimento”. Na verdade, você tem que ver o que ele está querendo dizer com isso, ele está apontando para algo. Cada frase, as explicações todas, tem um propósito funcional, todos os dharmas no Tipitaka tem um propósito funcional, nenhum deles são verdades completas, todos eles são verdades parciais.
Então, a pessoa que quer enxergar a verdade completa não pode ficar limitada ao ler e entender, pois na verdade isso pode virar um obstáculo na medida que você achar que aquele entendimento é sinônimo de visão completa. Isso vira um obstáculo para a pessoa enxergar a verdade verdadeira, pois ela se satisfaz com entendimento intelectual ou se engana, o ego agarra aquilo e tapeia a pessoa. Por exemplo, a pessoa ouve falar que osotāpanna não tem mais dúvidas com relação ao Dharma, aí o cara lê o Tipitaka, lê de novo… lê de novo e fala: “Ok, entendi! Não tenho dúvidas – oh, sou sotāpanna! Beleza! Entendi! Não tenho dúvidas. Ok, tô iluminado!”. As pessoas fazem isso, parece piada, mas estou falando a verdade, as pessoas fazem isso! As pessoas falam: “Eu tenho muita fé no Buddha e eu não tenho dúvidas com relação aos ensinamentos do Buddha. Eu sou iluminado!” O ego da pessoa agarra aquilo e ela não tem noção, não tem noção ao quê se refere o que ela está falando.
Esse é o ponto da importância de se ter uma tradição viva. Uma tradição de pessoas que botam isso pra funcionar, porque não dá para você preencher todas as lacunas só lendo os textos, a não ser que você seja uma pessoa de muito talento, como: Luang Pó Buddhadāsa, por exemplo – uma pessoa extremamente talentosa – e alguns outros como Luang Pu Man, Luang Pu Sao, etc. Para o resto de nós é sempre bom ter alguém que preencha as lacunas, que mostre onde essas peças se encaixam. Você pode dizer que o Tipitaka é um grande quebra-cabeça. Agora, se você não tem ideia de qual é a imagem que nós estamos tentando obter desse quebra-cabeça, você pode montar um quebra-cabeça de forma que aparece uma coisa que não era bem aquilo, né! Era para ser um bezerro e sai um cabrito. A pessoa diz: “Bom, eu tô vendo um cabrito aqui. Deve ser isso!”; mas não era, na verdade era um bezerro.
Não simplesmente assuma que está tudo ali. Na verdade, tem muitas coisas que não estão ali, o próprio Buddha dizia que ele só ensinava o suficiente para se alcançar a iluminação, mas, mesmo assim, você precisa ter experiência com o assunto. Não adianta só ler, tem certas coisas que você tem que saber como aplicar aquilo e esse como aplicar nem sempre é algo que dá para explicar. Não adianta você perguntar: “Tá bom! Então me explica como é que faz, aí eu vou saber e então eu faço direito”; mas não dá para explicar isso, não dá para você botar em palavras, tem certas coisas que você só vai captar através do convívio e da observação, coisas que você aprende de maneira indireta, observando a atitude, o modo de agir. Indiretamente você capta algumas coisas.
Ainda com relação à questão do prazer e sofrimento, uma coisa que as pessoas negligenciam de olhar é como… tem certas coisas que as pessoas não notam como são nocivas: uma das piores é pensamento. As pessoas têm o hábito de fantasiar a respeito de algo quando elas têm tempo livre porque é agradável, não custa nada, não tem nada demais. Então as pessoas ficam ali fantasiando uma coisa… ficam ali mastigando aquele chiclete: “Como seria legal se fosse assim!”, “Como seria legal se eu fosse aquilo!”. É difícil elas enxergarem o malefício daquilo, mas se você parar para refletir – quanto mais você fantasia sobre uma situação ideal, mais incapaz de estar satisfeito com aqui e agora você fica. Cada segundo que você passa no mundo da fantasia deixa você mais incapaz de estar feliz aqui e agora, mais incapaz de encontrar satisfação aqui e agora. Essa dinâmica entre felicidade e sofrimento é muito sutil.
Quando você capta a imagem do assunto, inicialmente você pensa: “Puxa! Na verdade, é como se fossem dois exércitos.” Você pensa que os dois soldados diferentes estão lutando por uma causa diferente, mas na verdade ambos estão em conchavo, ambos estão apenas fingindo que são inimigos, na verdade eles estão trabalhando por um único propósito. Quando você enxerga isso: “Ah! na verdade eles estão de conchavo! Eles são duas manifestações de um mesmo grupo, é só externamente que parecem inimigos.”
Felicidade e sofrimento também são assim. No começo você fica: “Caramba! É estranho eles serem tão opostos e ainda assim levarem ao mesmo ponto”, mas depois você olha com atenção e fala: “Ah não! Na verdade eles nunca foram opostos. Na verdade ambos estão intimamente entrelaçados.” Tem uma certa hora que você não tem mais muita clareza em dizer o que é sofrimento e o que é felicidade. Talvez seja o que as pessoas chamam de sensações neutras, não é nem felicidade nem sofrimento, mas ainda assim essa sensação neutra faz parte da estrutura que mantém a mente presa no samsāra. Então, sukha vedanā, dukkha vedanā e a sensação que não é nem sukha nem dukkha – todas essas são condições que mantém a mente presa no samsāra.
Tem um outro aspecto em que você pode olhar isso também. Se você olhar apenas em termos de sensações, quando você se deleita em sensações agradáveis você está reforçando o hábito de consumir sensações e você não tem como controlar as causas e condições que geram essas sensações. Quando você baseia a sua mente no consumo de sensações, é apenas questão de tempo para que as condições mudem e aquelas sensações passem a ser tóxicas, dolorosas. Quando você se deleita em sensações agradáveis você está criando o hábito de agarrar sensações. Assim que surgir uma sensação desagradável, você também vai agarrar aquela sensação desagradável.
É um pouco de ilusão você falar que só vai pegar a sensação agradável e que a sensação ruim você não vai agarrar. Você não vai conseguir fazer isso. Se você tem o hábito de agarrar sensações, você vai agarrar tanto a boa quanto a ruim, porque você acaba usando aquilo para definir a experiência de “eu”: “Eu sou isso que experiencia essas sensações”. E aí quando não tem sensação agradável: “Como é que eu vou fazer? Eu vou deixar de existir? Não, não… então vamos agarrar o ruim, né… Alguma coisa eu tenho que agarrar, porque eu quero existir”. A ideia de não existir é inaceitável. Você diz: “Eu só vou agarrar as sensações agradáveis, as ruins eu não vou agarrar”. Quer dizer que quando surgir sensação ruim você vai deixar de existir ou não? Não! Então você vai agarrar a ruim também. Enquanto o “eu” estiver presente e o “eu” for definido através dessas experiências, você não tem opção de não agarrar as sensações ruins.
É que nem fogo. Fogo não escolhe. Você taca fogo na fogueira e fala: “Ok, o fogo vai ficar só na fogueira.” O fogo não tem opinião a respeito disso, ele queima o que vier. Se você deixar, ele vai queimar tudo, ele não tem a noção de que isso aqui é lenha e isso aqui é casa. Ele não sabe a diferença entre lenha e casa. Ele queima! O ego consome sensações, o ego consome experiência. Ele prefere um tipo e não gosta do outro. Só que, na verdade, é apenas uma ilusão tudo isso, na verdade, essa questão de gosto disso e não gosto daquilo é apenas um jogo de espelhos, um jogo de sombras. Você não pode acreditar no ego quando ele fala: “Eu gosto disso, eu não gosto daquilo”, isso é só uma mentira bastante sorrateira, porque quando chega o sofrimento ele agarra também. Daí você diz: “Ai, que diabo! Você disse que não gostava de sofrimento, por que você está agarrando isso?”
Você pode observar isso na sua mente. Por exemplo, quando tem uma música agradável, um som agradável, sua mente fica distraída, em vez de ficar experienciando aquele som a mente se distrai – pensa nisso, pensa naquilo – mas quando surge um som irritante, a mente gruda nele não larga mais – o som de uma buzina, o som de um pagode, o som de alguma coisa… (risos) Quando eu era pequeno tinha um boteco em frente a minha casa e era pagode toda noite! Eu fiquei com raiva de pagode! Nada contra os pagodeiros, é que foi uma experiência traumática pra mim quando eu era criança… (risos) Então, quando surge um som que você decidiu que não gosta, que é irritante, a mente agarra e não larga ele: “Ei caramba! Então é assim que funciona!?” A mente sente deleite, sente aversão, quando há sensações agradáveis a mente também sente aversão, quando há sensações desagradáveis a mente também sente deleite. É muito relativo, é uma miragem tudo isso. Toda essa história de deleite e aversão na verdade é uma miragem criada pela mente.
Você pode notar que tipo de padrão mental você cultiva pelas coisas que a sua mente agarra. As pessoas que são raivosas passam batido em tudo que está correto, elas se fixam só no que está errado. Às vezes a coisa nem está errada, mas ela quer sentir a sensação de raiva, então ela cria na mente dela coisas erradas para poder sentir raiva. Se você pensar em termos desses seres celestiais, os devatas e os fantasmas são opostos. Os devatasolham tudo com olhar de positividade. Os fantasmas (petas) olham tudo com um olhar de negatividade. Para eles é tudo feio, é tudo sujo, é tudo horrível! Em tudo o que a pessoa olha só há pesar e escuridão. Uma outra pessoa olhando a mesma coisa não vê nada demais, a mente dela não que cria tudo aquilo.
Se fosse realidade essa dinâmica de desejo e aversão, a mente não iria criar nada que gerasse aversão. Se fosse mesmo verdade que “eu desejo isso e eu não gosto daquilo”, como você explica o fato de que a sua mente cria aversão a coisas que não estão ali? Ou até mesmo as coisas que estão ali… por que criar aversão ao que está bem ali? Porque tudo isso é ilusão, essa questão de “eu gosto eu não gosto” são ilusões, são mentiras. Você fala: “Eu gosto disso!” Mentira! Não é verdade verdadeira. “Eu não gosto daquilo!” Também é mentira, é uma fabricação da sua mente. Na verdade, a raiz do assunto, o que está por trás dessas ilusões todas, é uma coisa bem mais simples e não tem muita diferenciação de um ou outro. Como eu falei, são duas pontas da mesma cobra. Você pode falar: “Aqui é o rabo, ali a cabeça” Na verdade isso é apenas uma construção mental, você pode também construir a ideia: “Isso tudo é a cobra!” Não tem: “isso aqui é o rabo e isso aqui é a cabeça”. Na verdade, daqui até ali é tudo cobra! Não tem “aqui é cobra, ali não é cobra”. É tudo cobra! Cabeça, rabo, meio, dentro, fora, é tudo cobra!
Um aspecto importante da prática é isso, você aprender a criar sabedoria, o modo de enxergar as coisas que leva à libertação. Se você enxergar “é tudo cobra” você evita a cobra, se protege. Se você falar: “Isso é só uma cabeça, isso é só um rabo”. Não passa a ideia do que significado do que está à sua frente. É uma cabeça, certo, mas o que que isso significa? Quais são as consequências? O fato de ser uma cabeça acarreta a quê?
As pessoas falam: “Isso é prazer”. Ok, e aí? Se isso é prazer, o que é que isso significa? Quais são as consequências disso? As pessoas não querem fabricar essa ideia, as pessoas só querem fabricar a ideia: “Prazer é bom, prazer é legal” E aí elas continuam sendo mordidas pela cobra… a cobra pica pra direita, pica pra esquerda, pica pra cima e pra baixo e a pessoa: “Ai meu Deus! De onde está vindo toda essa dor?” (risos) Tomando picada pra tudo quando é lado e pensando: “Será que é o demônio, deve ser um fantasma, deve ser algum mau karma que eu fiz!” A pessoa nem para para olhar que na verdade é ela mesma. É ela mesma…
Pergunta: E o deleite na sensação da respiração, estaria errado?
Resposta: Não, na medida em que você é um ser humano, não tem como não sentir deleite ou aversão. Você só vai conseguir transcender isso num estágio bem avançado de prática. O Nobre Óctuplo Caminho é justamente uma forma de configurar esses deleites e aversões de forma que leve à iluminação.
Como falei agora pouco: você dizer “isso é só a cabeça, isso é só o rabo”, são construções mentais. Você dizer “Isso tudo aqui é a cobra”, ainda é uma construção mental, não chega a ser a verdade suprema e transcendental. É uma fabricação da sua mente, mas é uma fabricação que leva a um resultado. Entendendo que isso tudo é a cobra, você evita por completo, você agarra nem rabo, nem cabeça, nem nada, se afasta daquilo.
Com relação a deleite, no começo da prática você busca deleite naquilo que é condutivo à libertação, você sente aversão àquilo que é obstáculo à libertação. Mas conforme progride, você vai deixando essas coisas para trás. Esse deleite e aversão fica cada vez menor, você vai quebrando esse ciclo, esse hábito viciado de comportamento. Mas no começo você tem que usar deleite e aversão. Você cultiva e sente deleite pelas coisas que o Buddha elogiou, você evita e sente aversão pelas coisas que o Buddha criticou, e assim por diante.
Também falei isso no começo da palestra: as coisas positivas estão sujeitas ao mesmo princípio. Se você se apegar à mente pacífica, quando o prazer da mente pacífica desaparece, você sofre, fica irritado, fica com raiva, tem dificuldade em lidar com aquilo. Mesmo os deleites e prazeres que estão relacionados ao caminho budista também causam essa oscilação entre prazer e dor. Mas na medida em que ainda somos seres ignorantes, temos que usar o que possuímos, e o que a gente têm são esses mecanismos, então usamos eles. Conforme progride, você vai abandonando isso. Essa prática é algo que progride, e esse pêndulo vai diminuindo de ritmo, não é um vai e vem tão agressivo como era antigamente. Vai ficando cada vez menos, menos, até parar por vez.