Como Seria Uma Sociedade Budista?

21/07/2023
Publicado em Ensinamentos
21/07/2023 Mosteiro Suddhāvari

A gravação original desse ensinamento pode ser encontrada nesse link.

Às vezes eu gosto mais de conversar com pessoas não budistas do que com budistas porque as perguntas são diferentes. Você conversa com pessoas budistas e são sempre as mesmas perguntas, mas às vezes você conversa com pessoas não budistas e elas fazem perguntas interessantes, que fazem você refletir. Uma coisa que me perguntaram outro dia foi: “Se o mundo inteiro fosse budista, será que haveria problemas com a ciência? Será que o budismo iria ser contra a ciência?” Ou alguma coisa do tipo… Não me lembro exatamente como a pessoa expressou isso, mas é algo mais ou menos nessa linha.

O que eu acho sobre esse assunto é o seguinte: o budismo em si não teria nada contra a ciência, no sentido de ser contra o princípio da pesquisa científica ou do desenvolvimento tecnológico. Não tem nada que o budismo seria contra nesse sentido, mas algo que provavelmente aconteceria é o seguinte: se as pessoas realmente fossem budistas, se as pessoas realmente levassem a sério a prática da meditação, o desenvolvimento da própria mente, se elas realmente praticassem e experienciassem os frutos da prática do Dhamma, o que provavelmente iria acontecer é que haveria menos interesse em desenvolvimento tecnológico, haveria menos interesse em pesquisa científica.

Por que haveria menos interesse? Porque as pessoas estariam mais felizes, teriam mais saúde mental, as pessoas não estariam sofrendo tanto, as pessoas teriam mais resiliência, mais habilidade em aguentar desconfortos. Elas teriam uma compreensão melhor do que é estar vivo, de como é a vida no mundo. Então, quando ficassem doentes, por exemplo, não haveria um pânico tão grande assim. As pessoas ficariam doentes e pensariam: “Ok, eu aguento!” Não teriam a atitude: “Ah, estou doente, tenho que tomar um remédio!”  A pessoa ficaria doente e falaria: “Eu estou meio mal, acho que eu vou descansar um pouco para ver se isso passa sozinho”. Em vez de imediatamente entrar em pânico e começar a tomar analgésico e outros remédios só para abafar o sofrimento.

Haveria menos urgência em ter tanto recurso material. As pessoas seriam mais autossuficientes, não haveria um consumo tão grande de bens materiais. Não haveria tanta pressão para o desenvolvimento tecnológico, consequentemente haveria menos pesquisa científica também.

Por exemplo: será que as pessoas iriam se interessar em ir até a lua? Eu duvido! Elas olhariam assim e pensar: “Para eu ir até a lua, vou ter que construir esse tanto de foguete aqui…” Não é só um foguete, né! Para você conseguir ir são vários foguetes. Até você acertar e fazer aquele que funciona, são dezenas de foguetes fracassados e cada foguete custa dezenas de milhões de dólares. Então, eu duvido que as pessoas iriam achar: “Ah, acho que é uma boa ideia. Vale a pena!” Provavelmente não!

Elas teriam outras sensibilidades. Não haveria tanto interesse em sensualidade, o tipo de música que existiria seria bem diferente, o tipo de filme que as pessoas assistiriam seria bem diferente, o tipo de eventos – como as pessoas entendem o que é diversão – seria bem diferente. Provavelmente dariam muito mais valor a natureza, ao contato com a natureza. Iriam dar muito mais valor ao respeito mútuo.

Bom, se as pessoas seguissem os cinco preceitos não haveria assaltos, violência física, roubos, esse tipo de coisa… mas, obvio, nunca vai acontecer de todo mundo seguir essas regras ao pé da letra. É que nem Ajahn Chah falava: “Supondo que tenha um vilarejo, se pelo menos metade do vilarejo seguisse os cinco preceitos, então você pode ter certeza de que aquele vilarejo irá prosperar”. Pelo menos metade das pessoas… se você esperar que cem por cento cumpra os cinco preceitos é fantasioso, mas se pelo menos metade das pessoas levassem à sério, seria uma mudança radical. Porque mesmo que a outra metade não estivesse seguindo as regras de conduta e comportando-se de maneira correta, ainda assim haveria uma expectativa daquela outra metade (que segue os cinco preceitos). Aquela outra metade teria um padrão de comportamento esperado, uma expectativa do que é apropriado ou não uma pessoa fazer. Assim, mesmo que as demais pessoas não seguissem as regras, ainda assim haveria uma pressão. Elas teriam vergonha em fazer coisas baixas, em fazer coisas feias, porque a percepção da sociedade ao redor seria diferente. Eu acho que seria uma sociedade bem diferente da que a gente vê hoje.

Eu não acho que haveria perseguição aos cientistas, repressão à pesquisa científica. O que haveria seria um desinteresse, as pessoas teriam muito menos interesse pela pesquisa científica, pelo desenvolvimento tecnológico. Primeiro, elas não sentiriam tanta necessidade – se elas estão bem, aqui e agora, então para quê comprar algo novo? Haveria menos necessidade, haveria menos pressão mercadológica para que houvesse todo esse desenvolvimento tecnológico e científico. Mesmo na questão dos remédios, como eu já falei, haveria menos com certeza!

Outra coisa também que eu acho que seria um pouco diferente é a questão do estudo. Provavelmente o currículo estudado na escola seria um pouco diferente do que é hoje, não seria uma coisa tão enfática na questão da teoria, dos conceitos intelectuais, do treinamento intelectual. Talvez fosse um currículo que ensinasse mais habilidades práticas às pessoas, ou algo mais equilibrado pelo menos, porque a escola atualmente só ensina habilidades intelectuais, não ensina nenhuma habilidade emocional. Não diretamente, ensina indiretamente, por exemplo: se você não consegue chegar na hora na escola, você é reprovado; não consegue cumprir tarefas, você é reprovado; não consegue agir dentro de um contexto social, respeitar os demais, não ser mal-educado, ser gentil, colaborar com os demais, você é reprovado; se você não consegue prestar atenção na aula, você é reprovado.

Indiretamente a escola acaba ensinando um leque básico de habilidades emocionais, mas é de maneira indireta, não é essa a ênfase, a ênfase é dada em despejar informações.

Primeiro as pessoas treinam a mente a consumir, guardar e analisar informações e depois despejam uma quantidade absurda de informações sobre as pessoas, e a maioria não é muito útil. Eu até não critico tanto isso porque as pessoas não têm como saber o que vai ser útil ou não, elas colocam tudo aquilo que elas acham apropriado colocar, mas não ensinam o que fazer com essas informações todas.

É como se você fosse um arquiteto e você só se preocupasse em construir a parte de cima da casa, você não tem uma preocupação assim: “Como é que está a fundação disso?” Tem aquela atitude meio desinteressada: “Eu fui contrato só para fazer essa parte, a fundação não é trabalho meu.” Daí você constrói a casa e vai embora e aquilo desmorona. Então, a escola, a educação hoje em dia, é algo parecido. Simplesmente jogam um monte de informações e não estão preocupadas sobre qual fundação foi construído tudo isso.

Encontramos esse fenômeno: pessoas extremamente inteligentes, mas extremamente burras. Uma pessoa extremamente inteligente no sentido de que tem muita informação, muito conhecimento, mas às vezes não consegue nem viver e acaba cometendo suicídio, não tem o mínimo de recurso para não se matar. Ela não consegue sobreviver a si mesma. Pense um pouco nisso: a pessoa não consegue sobreviver a si mesma, imagina sobreviver ao ambiente ao redor! Nem a si mesma a pessoa consegue sobreviver, ela não tem recursos.

Apesar de ela saber tudo sobre engenharia elétrica, saber tudo sobre Freud, Kant, Leonardo da Vinci, Aristóteles, o presidente Washington, a Revolução Francesa, a história do Japão, a pessoa não consegue, por exemplo, não cometer violência sexual. Ela não tem recursos para evitar esse tipo de ação, ela não tem recursos para não ser um péssimo pai, uma péssima mãe. As informações (que recebeu na escola) não são muito uteis, às vezes é pior ainda: toda essas informações apenas dão recurso para que ela aja mal, que ela se comporte mal.

Eu me lembro quando era garoto e trabalhava numa empresa, foi o segundo emprego na minha vida, não tinha nem 18 anos ainda.  Era uma empresa em que os chefes, os diretores, eram extremamente corruptos – moralmente corruptos. Você via as coisas que eles faziam, como se comportavam, que tipo de atividades eles enxergavam como prazerosas, o que eles consideravam entretenimento. Era uma coisa que chamava a atenção. Eram extremamente decadentes, de todas as formas possíveis. Era repulsivo ver os tipos de coisas com as quais eles se envolviam, desde fraude, drogas, sexo, todo tipo de baixeza.

Era uma coisa que me fazia pensar: “Puxa, eles estariam melhores se não tivessem dinheiro. Se eles não tivessem dinheiro haveria um limite no que eles fazem. Eles poderiam fazer só um certo tanto. Mas como eles tem muito dinheiro, não tem limites, eles simplesmente vão em frente. Tudo que eles querem fazer, eles fazem,e o resultado final é esse: fazem coisas sujas, coisas baixas, coisas feias mesmo!” Tinham coisas que eu ficava espantado mesmo: “Caramba! Então quer dizer que as pessoas fazem isso! Que coisa! Se não tivesse dinheiro, não teria como a pessoa fazer aquilo. Talvez a pessoa só iria a um jogo de futebol, tomar uma cerveja e era isso! Mas como tem dinheiro, não tem limites!”

Às vezes o sucesso que as pessoas conseguem, leva a sua própria queda. Essas pessoas por exemplo – a maioria delas eram advogados. Se essas pessoas não tivessem tido a oportunidade de estudar e adquirido esse conhecimento de como manipular as leis e tudo mais, talvez fossem pessoas bem melhores, talvez tivessem sido protegidos de suas próprias maldades. Mas, tendo estudado, memorizado e ganhado diploma, então, não havia nada que segurasse a feiura delas.

Se olharmos esses políticos, que têm tanto por aí no Brasil, é realmente uma lastima que eles tenham sido eleitos, porque agora não tem limites para quão baixo eles vão cair. Tendo acesso a dinheiro e estando isentos da lei – ao pouco que há de lei, mesmo esse pouquinho que há, não se aplica a eles – então não tem limites, as pessoas simplesmente vão em frente sem o menor… elas não tem recursos emocionais para impedir o mal comportamento delas mesmas.

Eu acho que se o mundo fosse uma sociedade budista, talvez a percepção do que significa educação seria diferente; mas quando eu digo ser um mundo budista, uma sociedade budista, não é que nem a Tailândia ou o Sri Lanka ou os demais países budistas. O que eu quero dizer com ser uma sociedade budista é uma sociedade em que as pessoas realmente praticam, não budista só de nome, porque eles são budistas assim como o Brasil é católico, é cristão. O Brasil é cristão, mas não é! Porque as pessoas não agem de acordo. Elas são cristãs só na hora de responder à pergunta da entrevista do Censo, mas se olharmos na prática, quase ninguém é cristão nesse país, ninguém… meia dúzia de pessoas. Então não é! Se você perguntar: “O Brasil é cristão?” A resposta é: “O Brasil não é cristão, porque as pessoas não se comportam de acordo. Elas são cristãs só no nome.” Nos países budistas também é assim. As pessoas são budistas só no nome, na prática mesmo, não são.

Ainda assim você encontra algumas iniciativas bem interessantes nesse sentido. Dá para imaginar como seria um país budista experienciando o modo de vida na Tailândia, por exemplo, mesmo que não seja um exemplo bom de sociedade budista, ainda assim você consegue imaginar, consegue projetar: “Bom, se mais pessoas levassem a sério, como seria essa sociedade?” Você vê várias coisas interessantes… haveria muito mais caridade entre as pessoas, as pessoas seriam muito mais amigáveis umas com as outras e assim por diante. Haveria várias coisas curiosas que iriam acontecer. E também o conhecimento da mente seria bem diferente. Uma das ciências que seria bem diferente seria a ciência da mente, que atualmente me parece uma coisa muito distorcida. As pessoas ainda têm uma visão, eu diria, supersticiosa do que é a mente humana, do que significa a mente, como ela é, como funciona, de onde vem.

Outro dia estava ouvindo uma entrevista com um antropólogo que estuda a evolução da humanidade desde os primatas até o homo sapiens, os diversos estágios. E é obvio que é um estudo que você faz projetando, não tem como conversar com um homo erectus ou com um homem de Neandertal para perguntar como vivem, quais suas opiniões. Então você vê que a pessoa fica ali pensando, imaginando: “Eu acho que eles fizeram isso, acho que eles pensavam assim, acho que se comportavam assim”. A pessoa imagina como era o comportamento deles, como eles pensavam, como agiam, como era a sociedade desses diversos grupos, desde os primatas. Estudam os macacos, os chipanzés, os gorilas e essas diversas versões anteriores até chegar ao homo sapiens. Eles vão estudando os sinais, como viviam, como comiam, qual era a dieta deles, como eles se relacionavam e tudo mais.

Achei tudo muito interessante, muito útil na verdade. Mas dá para ver claramente como é que a pessoa projeta, como ela imagina como os outros viviam de acordo com a sua própria percepção de como é a mente humana… o que significa ser humano. Eles sempre julgam os demais de acordo com sua própria experiência, e na medida que as pessoas não compreendem sua própria experiência, fica difícil para elas terem uma visão clara do que é o outro, ainda mais um outro que viveu a 100 mil anos atrás.

Não estou dizendo que eu saiba mais do que eles sobre esse assunto, mas ainda assim tem algumas partes que deu para pensar: “Puxa vida! Essa opinião dele está distorcida, ele não tem uma compreensão clara de si mesmo aqui e agora e, aí avalia os outros, projeta sobre os outros, a mesma opinião que tem sobre si mesmo – como é que ele entende o que as pessoas são”. Mas é assim mesmo, a pessoa não têm opção, não têm como fazer outra coisa.

Você tem que tentar fazer o melhor possível para entender. Como eu falei – a gente não tem uma máquina do tempo, então o trabalho é meio de detetive – mas, se as pessoas tivessem uma compreensão melhor do que é a mente, o que é pensamento… Essas coisas a ciência não entende até hoje! A ciência não entende o que é um pensamento, o que é a memória, como é que isso funciona, como isso está relacionado com as emoções. As pessoas ainda pensam que o cérebro é a mente, então fica difícil! As pessoas não têm noção do que é que estão falando, elas têm uma visão muito pequena do assunto. Então fica difícil realmente enxergarem o quadro completo. Essa é uma ciência que eu acho que seria bem diferente. A compreensão até dessa questão antropológica…  tudo que envolve a mente!

A compreensão da história seria diferente, a compreensão assim: “Por que Napoleão fez tal coisa”? Eu acho que eles teriam uma compreensão bem diferente! “Porque o governo do país tal decidiu entrar em guerra?” Eu acho que eles teriam uma percepção bem diferente do que é que motiva as pessoas, do que é que motiva a ação das pessoas. Iria ser diferente… E também a questão da psicanálise, da neurologia, todas essas partes que envolvem a compreensão da humanidade e dos seus diferentes aspectos, acho que seria bem diferente.

Agora, a compreensão da física, da química, da astronomia e até da biologia, acho que não teria muita diferença. Talvez, como eu falei, haveria menos interesse, haveria menos esforço, porque não haveria uma pressão financeira tão grande empurrando as pessoas em direção a esse tipo de conhecimento.

Mas é possível que, as pessoas sendo mais saudáveis, tendo uma visão mais clara, tivessem uma mente mais afiada. Talvez fosse o exato oposto do que falei e as pessoas teriam um desenvolvimento tecnológico muito maior se elas fossem budistas, porque a mente delas trabalharia claramente. As descobertas científicas seriam muito mais fáceis, haveria muito mais facilidade em pensar, em raciocinar e em enxergar conexões. E haveria a ciência da mente, haveria a ciência das energias que não são detectadas pelo mundo material. Agora acabei de mudar de ideia! (risos) No meio da palestra eu mudei de ideia! Na verdade, talvez fosse diferente, talvez haveria muito mais desenvolvimento tecnológico do que a gente tem hoje… talvez! Mas com certeza seria interessante, seria diferente!

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