Transcrição de palestra dada em outubro de 2021. Veja a gravação nesse link.
Ontem eu estava conversando com um grupo de pessoas pela internet, pessoas de outra religião. Elas estavam me perguntando como é o treinamento budista, como é o treinamento dos monges. Eu explicava para elas que o princípio por traz do treinamento monástico nessa tradição que seguimos é basicamente o princípio das clínicas para recuperação de dependentes químicos. Que é, simplesmente, ‘remover’.
O dependente químico basicamente organiza a sua vida ao redor da sua dependência. Todo mundo precisa de felicidade para existir. Se a pessoa não tem felicidade de uma forma, ela se utiliza de algum recurso para obter felicidade. Algumas pessoas usam drogas. (Nas clínicas) remove-se as drogas e tenta-se dar suporte para a pessoa aprender a vencer aquilo que a incomoda, que a perturba por dentro. Ajudando a pessoa a desenvolver a saúde mental. Se não ajudar a pessoa a desenvolver a saúde mental, se só remover o objeto físico do vício, a pessoa, assim que sai da clínica, começa a usar drogas de novo, não resolve o problema. Porque a causa do uso de drogas continua presente.
A pessoa tem uma dor interior, tem algum problema dentro dela com o qual ela não consegue lidar, então ela acaba usando drogas para aliviar o sofrimento. Noventa e nove por cento dos casos são isso, a pessoa tem algum problema emocional, algum problema psiquiátrico não diagnosticado, algum trauma que a impede de sentir bem-estar. Então a necessidade de usar alguma substância para gerar esse bem-estar é muito grande. A pessoa fica viciada e tudo o mais.
Para os monges não é muito diferente. Tira-se todos os prazeres sensuais. Tira acesso à internet, tira acesso à televisão, tira acesso à comida, tira acesso a passear e se distrair.
E aí, o que acontece? A pessoa começa a surtar, obviamente! A personalidade da pessoa começa a cair aos pedaços. Porque ela era uma pessoa estável e funcional, mas contando com estes suportes. Contando com um cineminha, contando com um torresminho, contando com essas coisas. Tira isso e a pessoa começa a entrar em colapso. Então dá-se um suporte para pessoa. Ela tem atividades, tem trabalho manual… Apesar que também é bom a pessoa entrar em colapso para ela ver o que realmente a mente dela é. Mas algumas pessoas sofrem com isso porque não era o que elas queriam. Elas vão virar monges achando que ‘Ah, eu quero achar a paz!’, ‘Eu quero o bem-estar!’, ‘Eu quero ser uma pessoa especial!’, ‘Eu quero ser uma pessoa iluminada!’, ‘Eu quero flutuar no ar!’, ‘Eu quero que todo mundo me elogie!’, ‘Eu quero ser famoso!’… Tem todo tipo de gente. Então, se a pessoa vem com uma atitude errada, quando ela encontra esse fenômeno, ela desiste na hora. Não era aquilo que ela tinha em mente.
Mas se a pessoa vem com a atitude de vencer esse desafio, ‘Foi justamente para isso que eu virei monge! Para enfrentar esse desafio! Para vencer essa batalha! Dominar, purificar minha própria mente, voltar à sanidade mental’. Se quer voltar à sanidade mental, tem que enfrentar a loucura. Se continuar se anestesiando com distrações, nunca vai enxergar a cara da loucura.
É justamente isso o que a gente faz. Tirando as distrações, tiramos o bicho da toca. Aí temos que brigar com ele. Dominar o leão. É interessante. Se a pessoa não tem expectativas irrealistas, é algo muito interessante de se ver.
Se você na vida laica foi bem-sucedido, popular, se todo mundo gostava de você, elogiava você, você era um cara muito bacana… Você vira monge e aí começa a ficar irritado o tempo todo, achando defeitos nos outros, reclamando do frio, do calor, da fome, da comida, aí então você vê: ‘Eu não sou tão legal como achei que era. Aquilo era só circunstância…’ Quando a circunstância muda, a verdade sobre si mesmo se manifesta.
É difícil, às vezes, olhar para isso. É doloroso olhar. Realmente agride o ego. E ninguém sabe de verdade o que é que está acontecendo dentro da própria mente, onde estão as armadilhas da sua mente, quais são seus verdadeiros apegos. Esse tipo de coisa é só quando você faz que começa a descobrir.
Eis uma história que já contei várias vezes: quando fui morar num mosteiro tailandês não sabia falar tailandês direito, então falava tudo errado, entendia mal o que as pessoas falavam… Você fala e as pessoas não entendem, tem que repetir dez vezes, tem que fazer sinal com a mão. As pessoas falam: ‘Olha, amigo, faz aquilo ali’ e você entende mal, faz outra coisa que não a que a pessoa pediu…
Você vai vivendo desse jeito e o resultado é que as pessoas começam a perceber e enxergar você como uma pessoa burra, porque o final é o mesmo. Você ser burro e você não conseguir entender o que as pessoas falam, o resultado prático é quase o mesmo, na verdade. Para elas você é burro, elas pedem e você entende mal, elas falam e você não entende, fala para você fazer uma coisa e você faz outra… ‘Putz! Esse cara é burro!’.
Quando eu percebi que as pessoas ao redor estavam com a impressão de que eu era burro, nossa, isso machucou para caramba, foi duro! Eu não sabia que eu tinha essa vaidade, essa vaidade de ‘Eu sou inteligente’. Eu tinha essa vaidade e não sabia, não tinha essa percepção. Na verdade, pensando no passado, era meio que óbvio que eu tinha esse apego, que eu tinha essa vaidade, mas era uma coisa que eu não computava, não dava importância. Só quando a situação muda, quando se remove o seu acesso à “droga”- ao prazer do ‘Eu sou inteligente! As pessoas me admiram!’ – é que você cai! Sua mente cai em completo caos.
Mas tendo visão da prática, tendo visão do Dhamma, tendo visão do que está sendo feito, você consegue persistir e falar ‘Ok, na verdade é bom que isso tenha acontecido, agora eu vou poder me livrar desse defeito’. Se isso não tivesse acontecido talvez até hoje eu estivesse naquela fantasia. Então, na verdade, é vantagem, como o Buda dizia! Ele dizia que deveríamos ter para com a pessoa que aponta em nós um defeito a mesma estima que temos para com a pessoa que nos aponta um tesouro escondido. Quando uma pessoa aponta um defeito nosso, deveríamos ter tanta gratidão por ela como teríamos gratidão por uma pessoa que nos aponta um tesouro escondido.
Então, quando enxergamos algo desagradável na nossa personalidade, deveríamos ficar felizes porque agora enxergamos e podemos resolver. Antigamente isso era um ponto cego, eu era vítima disso e não tinha o que fazer a respeito. Você só consegue trabalhar em algo quando consegue perceber a presença desse algo, enquanto você está cego para aquilo, você não consegue resolver! Você precisa enxergar o problema para conseguir resolver. Então, na verdade, é uma ocasião para ficar feliz e falar ‘Que bom que eu enxerguei isso! Agora eu posso resolver esse problema. Antigamente esse problema existia e eu não tinha acesso a ele, agora tenho acesso, agora consigo enxergar o que está acontecendo. Agora é só trabalhar, ter paciência, persistência e vencer’.
Com o tempo fica divertido. Vence uma vez, vence duas vezes, vence três vezes, quatro, cinco, seis, e você vira o jogo, não tem mais medo da sua própria mente, não tem mais medo das kilesas. Você até pede por mais! Fica divertido! ‘Tá com medo de quê? De fantasma? Oba! Então vamos lá no fantasma, agora!’ Houve uma época em que tinha uma cabana no fundo do mosteiro, que o pessoal falava que era assombrada, tinha fantasma e, quando eu ouvi falar, eu disse: “É lá que eu vou”. No mesmo dia peguei minhas coisas e fui morar naquela cabana, fiquei morando lá e esperando para sentir medo. Você sente prazer nesse embate. Sente prazer em vencer as tendências mentais, vencer as obsessões mentais.
Fiquei lá uns três dias e fui embora porque não tinha fantasma algum. Na verdade, eram uns lagartos bem grandes que havia lá e faziam barulho, eles andavam por baixo do telhado e faziam barulho. Faziam um barulho bem diferente e até entendi por que as pessoas achavam que eram fantasmas, porque era um barulho meio curioso; então as pessoas não conseguiam identificar o que era e achavam que eram fantasmas, mas eu fui, olhei e: “Ah, é lagarto, então vou embora, vou ficar aqui para quê? Eu vim aqui para ver fantasma, não tem fantasma eu vou embora”.
Ajahn Anan contava que quando sentia muita sonolência ele se sentava no alto da torre do sino, pois se ele pegasse no sono, ele cairia e morreria, então, para vencer a sonolência, ele usava o medo de morrer: “Se eu cair no sono, eu vou morrer, então não posso dormir”. Sentava lá, varava a noite sentado e usava o medo de morrer como recurso para não cair no sono. Até o dia em que ele percebeu que não tinha mais medo, ele podia sentar no alto, na beiradinha e não sentia medo: “Então não serve, vou voltar para cabana, vou voltar para meditar na cabana. Isso aqui só dá certo se houver medo, se não houver medo não tem por que fazer isso”.
Às vezes, a prática é justamente esse embate, a maioria das pessoas vem praticar querendo fugir dos problemas, mas na verdade deveria praticar para enfrentar os problemas.
É como uma guerra. As pessoas falam ‘Bom, eu quero vencer a guerra, eu quero que acabe a briga, eu não quero briga’. Só que, às vezes, o método para que não haja briga é enfrentar o inimigo! Você enfrenta e vence. Pronto, agora acabou a briga. Você não quer brigar, então você foge o tempo todo porque, afinal de contas, ‘não quero briga, então vou fugir! Se eu não quero briga e o inimigo está para cá, eu tenho que ir para lá’. Indo para o lado oposto do inimigo você evita a briga, mas nunca vai realmente descansar, porque o inimigo vai estar sempre no seu encalço. Você estará sempre fugindo. Foge quinhentos metros, foge dois quilômetros; amanhã tem que fugir mais dois, porque ele continua vindo, então você nunca descansa de verdade, está sempre com medo, sempre dormindo com um olho aberto, sempre preocupado com o amanhã.
Se você quer paz, tem que vencer o inimigo, derrotar, e aí sim a paz estará estabelecida de verdade, e não a paz precária, mas uma paz firme e verdadeira.
Ao contrário do que a intuição das pessoas diz, às vezes o método para encontrar a paz é enfrentar a perturbação, o método para encontrar a felicidade é enfrentar o sofrimento. Ou também como Ajahn Cha costumava dizer: “A limpeza está bem ali na sujeira. Bem onde está sujo, ali está a limpeza. Se você remover a sujeira, a limpeza já está ali”. Então a pessoa fala: ‘Ah, eu quero limpeza, então vou sair daqui porque está sujo’. Se você quer limpeza, você trabalha bem aqui, bem onde está sujo, é ali que vai surgir a limpeza. Por trás da sujeira está a limpeza e, da mesma forma, o bem-estar está bem atrás do mal-estar.
Se você quer alcançar o bem-estar, tem que atravessar o mal-estar, porque ele está bem atrás. As pessoas acham que, para encontrar bem-estar, tem que ir para montanha, ir para o Tibete, tem que ir para o altar não sei o que lá, tem que fazer cerimônia para tirar o mau kamma. Na verdade, está tudo bem ali dentro de você. É só você parar de ter medo de olhar para si mesmo, parar de ter medo de si mesmo, aprender a trabalhar consigo mesmo; está tudo ali o tempo todo, nunca esteve em algum outro lugar. Mas as pessoas não têm percepção disso.
É como eu falo: como é preciso sentir bem-estar para conseguir existir como ser humano, quando a pessoa vira monge, tudo aquilo que era fonte de bem-estar dela é removido, então a pessoa tem um limite de quanto tempo ela aguenta antes de desistir, antes de entrar em colapso. Geralmente o que se observa é dois anos, no máximo três, em geral muito menos que isso, em geral no primeiro ano a pessoa já desiste. Se ela não consegue encontrar bem-estar, se não consegue ter alguma forma de sucesso com a prática dela, se não consegue pacificar, desenvolver saúde mental, desenvolver bem-estar que vem de dentro de si mesmo – não bem-estar que vem de fora – se não consegue encontrar essa fundação, então é uma questão de tempo, é só esperar mais alguns meses que ela vai desistir. Não tem como sobreviver a isso, não consegue suportar. Mesmo que às vezes ela não desista da vida monástica em si, ela desiste de praticar o Dhamma. Então ela fica só estudando livros e fazendo outras atividades, construindo mosteiro, escrevendo e traduzindo textos e etc. Às vezes fica ensinando como uma forma de distração. Dá um curso aqui, outro lá; um retiro aqui, outro lá, como uma forma de manter a mente ocupada.
Mas em geral as pessoas desistem mesmo. Largam a vida monástica e voltam para a vida laica. Então não é o que as pessoas imaginam. Por isso que em mosteiros para novatos, para quem está começando a vida monástica, é bom que tenha muito trabalho para fazer, para manter as pessoas ocupadas. Porque a maioria das pessoas não tem saúde mental suficiente para estar consigo mesma sem distração. Monge novato é colocado para trabalhar, para carregar peso, limpar banheiro… Ou fazem como Ajahn Cha fazia: “Essa areia que está aqui, leva ela para lá”; uma semana depois: “Pega essa areia que está aqui e devolve ela para lá”. Precisa trabalhar, porque se não der algo para eles fazerem começam a surtar.
Mantem-se as pessoas ocupadas de alguma forma até conseguirem ter mais um pouco de habilidade em lidar consigo mesmas. Depois dá-se mais oportunidade para fazerem retiro, ficarem em reclusão, morar na floresta, morar na caverna, sair em peregrinação. Mas no começo não é muito bom. As pessoas querem virar monge e: ‘Queria ir para o mosteiro que fosse muito pacífico, onde eu não tenha nada para fazer, não tenha barulho’, mas nem sempre isso é o ideal.
As pessoas com quem eu estava conversando online perguntaram: “Na nossa religião a gente enxerga o contato, o relacionamento com as pessoas, como uma forma de prática espiritual; vemos que se progride através do relacionamento com as demais pessoas. Como é isso no budismo? Vocês se isolam? Parece que é o oposto de nós. Parece que no budismo você tem que se isolar”, e eu disse: “Não. Você não tem que se isolar. Depende do que você está pronto para fazer ou se você já passou dessa etapa”.
Veja, a iluminação não está nos outros, a iluminação está em si mesmo. A Iluminação é uma busca interior, não exterior! Não vamos encontrar a iluminação num filho, numa filha, numa casa, num emprego, numa profissão, numa carreira. Não é ali que se encontra iluminação! A iluminação é algo que você encontra dentro de si mesmo. Então, cedo ou tarde, você terá que trazer essa busca para dentro, quando isso irá acontecer, depende de cada um.
Algumas pessoas ainda não estão prontas para isso, não tem as qualidades necessárias para fazer isso. Então elas tentam progredir de alguma forma ainda utilizando o mundo exterior. Ainda utilizando os relacionamentos, as atividades, os projetos, as coisas do mundo. Então a prática delas ainda está conectada com o mundo exterior, porque elas não têm ainda as qualidades necessárias para lidar consigo mesmas; lidar com o exterior é mais fácil para elas, o interior ainda é uma coisa muito assustadora, muito sutil a que não conseguem ter acesso. Ou então têm um medo terrível, muito medo de olhar para si mesmas, não conseguem suportar a visão de si mesmas – é o que acontece com a maioria das pessoas.
Como falei, você tira as distrações delas e elas começam a surtar, porque é insuportável a visão de si mesmas, é algo doloroso demais para se olhar. Se a pessoa não tem algum nível de saúde mental, não consegue aguentar aquela experiência, precisam de distrações até, aos poucos, desenvolver mais sabedoria, aos poucos abandonar os maus hábitos mentais, aos poucos desenvolver bons hábitos mentais, desenvolver um “canivete suíço” na sua mente para lidar com as coisas que acontecem.
Então você fica hábil em lidar com a sua própria mente. Não é que isso seja uma coisa budista, ‘Os budistas ensinam a se isolar’, depende de quem é, não é para todo mundo, depende da pessoa estar pronta ou não para enfrentar o verdadeiro inimigo, que é a si mesmo. Enquanto a pessoa não está pronta para enfrentar isso, ela vai trabalhando de maneira indireta através da interação com o mundo, através da interação com as pessoas, de realizar projetos, vai trabalhando, melhorando a si mesma, vai desenvolvendo boas qualidades.
Eu sempre recomendo às pessoas: façam algo difícil! Aprendam a falar uma língua, aprendam a mexer com carpintaria, aprendam a tocar um instrumento musical. Façam alguma coisa difícil porque isso vai desenvolver boas qualidades mentais em vocês. A pior coisa é a pessoa ficar parada olhando para a televisão, ela só regride.
Mesmo que você não queira virar monge, tudo bem, mas ache uma forma de desafiar a si mesmo! Vai fazer exercício, acordar às quatro da manhã e praticar corrida, fazer natação. Aprenda a falar inglês, aprenda alguma coisa! Faça alguma coisa que seja difícil, que requeira boas qualidades para conseguir obter sucesso naquela atividade. Assim você treina a mente a ter boas qualidades, a enfrentar frustração, a enfrentar o desânimo, a enfrentar a raiva de si mesmo porque você não consegue realizar algo: ‘Estou tentando e não consigo! É chato, é cansativo, é monótono! Eu sou impaciente!’ Aí você treina nessas coisas, usando uma atividade qualquer.
Mas se você já tem uma boa fundação de saúde mental, você pode abandonar essas práticas indiretas e começar a trabalhar diretamente com a mente. Senta e lida direto consigo mesmo, sem apoios externos. Você senta e encara o leão de frente. A minha sensação quando era noviço lá na Tailândia era essa. Eu estava trancado numa cabaninha de madeira com um leão, um olhando para a cara do outro: “E agora meu amigo? Somos nós dois!” A gente vai conversando e se entendendo aos poucos. E com o tempo o leão vira um gato, mas isso demora um tempo e no começo é bem difícil! Eu fazia questão de evitar ficar lendo livro, eu queria isso, eu queria aquele stress, não queria fugir para nenhuma distração, não queria ler livros. Quando vinha aquela sensação de desconforto, de ansiedade, de agonia, qualquer que fosse, eu pensava “Ok, é para isso que eu vim aqui! Ótimo, vamos lá! É para isso que vim até aqui. É justamente com você que eu quero conversar!” Quando vinham essas sensações todas de insatisfação, inquietação, todas essas coisas, “Opa! Agora sim! Agora vou praticar! Agora chegou a hora!”
Mas é difícil. Uma das coisas com as que eu tinha mais dificuldade de lidar era com o sono. Eu tinha que acordar às três da manhã e tinha que praticar meditação sozinho. Não tinha a meditação em grupo. Eu acordava às três da manhã e era eu comigo mesmo. Para conseguir me manter acordado foi um desafio terrível. Eu acho que um dos mais difíceis que eu já tive, mas a vitória também foi excelente! Quanto mais difícil é o desafio, maior é a sensação de prazer quando você vence. O desafio é grande, mas a recompensa é maior ainda. Quem tem persistência, quem é resoluto, consegue não desistir e colhe uma recompensa que é muito maior do que o sofrimento do desafio, e este não é tão grande quanto o prazer da recompensa. E nem é o prazer da recompensa, mas sim o benefício da recompensa, não é questão de ser agradável, é algo que é realmente especial, é diferente, é algo nobre, algo útil, algo limpo e, consequentemente, aquilo carrega um bem-estar associado, mas não é o bem-estar que é o X da questão. Bem-estar é você ter essa percepção de que agora a mente está voltando ao normal, está entrando nos eixos, as coisas estão voltando ao normal, agora estou voltando a ser uma pessoa sã, vencendo a insanidade e recuperando a sanidade. É algo desafiador, mas também tem uma recompensa bastante interessante.
O começo da prática monástica é isso. Nos primeiros cinco anos, basicamente é o que você faz. Você não tem o dever de ensinar ninguém. É o contrário inclusive, você é proibido de ensinar! Quando alguém pergunta, você ‘Eu não sei… Não manjo desse assunto… Pergunta ao Ajahn ali… Sou muito novo nesse assunto…’ Lá na Tailândia eu ficava impressionado com alguns monges que tinham mais de dez anos de ordenação, e monges os quais eu sabia que tinham prática de meditação profunda, que tinham alcançado samādhi, e por isso buscava conversar com eles, sabia que o Ajahn elogiou aquele monge: “A prática dele é firme! Aquele monge está progredindo bem na prática!”, aí eu pensava: “Então vou conversar com ele, né? Se ele tá manjando, eu vou conversar com ele para ele me ensinar…” Aí você ia conversar com ele e “Ah, eu não sei… Eu estou muito no começo… Não sei muito das coisas…”, aí eu “Cacilda! Se esse cara não sabe, então quem é que sabe? Se esse é o monge que o Ajahn elogiou, e ele não sabe, então eu tô lascado, porque eu sei menos ainda…”.
Mas aquilo era a humildade da pessoa. Às vezes é isso, a pessoa só tem a noção de quanto ela não sabe quando obtém algum progresso com a prática. Geralmente a pessoa que acha que sabe é porque não tem noção alguma do que está falando. Tal pessoa não tem pudor ao falar, porque não tem noção do que está falando. Quando se tem noção, tem-se pudor ao falar. Tem-se a noção da profundidade do assunto. Sabe-se que disso não se fala de maneira negligente, à toa. É algo que tem uma significação muito profunda e a pessoa sente até receio de falar. Ela enxerga o quão sério é o assunto.
Então, nesse começo, você não ensina. O seu trabalho é aprender. Como eu falei outro dia, o manto monástico é um uniforme de escola, não é o uniforme do professor, é de aluno. Mas muitos não entendem assim. O cara quer vestir e quer ficar bonito, fazer pressão, ‘Olha como eu sou bacana! Olha! Eu sou um monge!’, usando o manto para se exibir. Mas isso na verdade é uma roupa de estudante e não de professor.
Nesse período inicial você está sempre com seu mestre, você não tem liberdade de movimentação. Vive no mosteiro junto ao seu professor, não vai a lugar algum, fica ali. Antes de ir a algum lugar precisa pedir permissão e, em geral, não ganha permissão. A resposta é sempre NÃO!
Depois de cinco anos vivendo esse período em que o monge é denominado nāvakā, passa-se a ser um monge mājjhimā pelos próximos cinco anos. Nesse nível, mājjhimā, você goza de liberdade de movimentação. Pode viajar sem pedir permissão, pode ir morar numa caverna, pode fazer peregrinação sozinho, pode morar na floresta, pode estudar noutro mosteiro, ‘num mosteiro tal o Ajahn ensina diferente’, ‘Ok, vou lá ver como é’. É um período em que você também não ensina. Você ainda está estudando. Só que você estuda com mais liberdade. Você já tem mais competência em cuidar de si mesmo, então não há mais necessidade de ficar muito próximo ao Ajahn, você tem mais liberdade de movimentação. Mas ainda assim você não ensina. As pessoas perguntam, você finge que não ouviu, dá uma desculpa qualquer, evita ao máximo.
Mesmo nos suttas você vê exemplo disso, vê que era uma atitude elogiada pelo Buda. Há casos em que pessoas ficavam muito impressionadas com um monge, ‘Olha, esse monge é muito bem-comportado… Profere palavras sábias…’, daí vão lá oferecer coisas e tal. Mas quando o monge vê que as pessoas estão com muita reverência por ele, ele vai embora! Pois ele acha aquilo um perigo… Luang Pó Nuam falava isso para mim. Ele falava: “Do que os monges praticantes mais têm medo é do incenso e das flores”. Na Tailândia eles prestam reverência trazendo bandejinhas com incenso e flores. “Monges da floresta não têm medo de cobra, de aranha, de escorpião. Eles têm medo de incenso e flores”. Eles têm medo dessa adulação das pessoas, enxergam o perigo nisso. Não enxergam perigo nas florestas, nos bichos, nas cobras e nos escorpiões, enxergam na adulação das pessoas para com eles. Então eles fogem. Eles tentam ao máximo ficar longe, viver afastados. Até que tenham uma fundação firme, sintam-se confiantes de que conseguem não cair na tentação da vaidade, na tentação do apego a elogios e etc.
Então, até o décimo ano você não ensina, você ainda está aprendendo. A partir do décimo ano já te chamam de Ajahn. Ajahn significa professor. Independente de você ensinar ou não, você é chamado de Ajahn. O que eu acho interessante, porque exerce certa pressão sobre a pessoa: ‘Olha, faz dez anos que você está comendo, dormindo, vivendo de graça. As pessoas oferecem comida para você, a cabana em que você mora foram as pessoas que ofereceram, quando você ficou doente as pessoas te levaram no hospital, o chinelo que você usa alguém te ofereceu… Então, já faz dez anos. Está na hora de você retribuir’. Em geral há essa pressão. Depois de dez anos é esperado que você faça alguma coisa. Se você não vai ensinar, então ajude no mosteiro, ajude a cuidar da burocracia do mosteiro, ajude em alguma coisa! Achar que por dez anos morando no mosteiro não vai cumprir papel algum, não vai ajudar com coisa alguma, não é algo prático.
Há alguns poucos que conseguem ser tolerados quando todas as tarefas estão sendo cumpridas sem necessidade de mais alguém. Mas não é assim, no geral. Como há muitos monges na Tailândia, há muita gente para trabalhar. Então se um ou outro não quiser trabalhar, quiser se manter recluso, sem se envolver com os assuntos, não é tão difícil. É assim: ‘Ok. Já que você se dispõe a trabalhar, eu então vou ficar aqui só com a minha meditação’. Mas é rara essa atitude.
As pessoas me perguntaram: “Mas por que você veio construir o mosteiro?” Porque eu já tinha mais de quinze anos como monge. É meio que um dever. Você precisa aceitar o momento da sua prática. Uma coisa que eu observava quando eu era anagārika no mosteiro, é que havia pessoas com muita pressa para virar monge, ‘Quero me ordenar! Quero me ordenar! Não quero ficar aqui como leigo!’ E eu pensava comigo mesmo: esse cara não consegue ser leigo, como vai conseguir ser monge? Se estava com aquela pressa de ser monge, era porque não conseguia ser leigo. Que aprendesse a ser leigo primeiro e depois virasse monge! Quem nem leigo consegue ser, como será monge?
Também o noviço. Como noviço fica naquela ansiedade de querer se ordenar! Tal pessoa não consegue nem ser noviço. Não consegue apaziguar a mente de noviço, queima de desejo de receber a ordenação plena! Significa que não consegue nem fazer isso, a parte mais simples. Então tá lascado! Porque a mesma coisa que queima na mente de noviço, vai continuar queimando na de monge.
Tem que aceitar o treinamento. Se o treinamento é de noviço, treinar como noviço. Se é de nāvakā, treinar como nāvakā. Se é de mājjhimā, treinar como mājjhimā. Quando chega no nível de Ajahn, de Thera, treinar como um Thera. Um Thera tem deveres de Thera a cumprir. Não pode querer viver em discordância com seu tempo de ordenação. Estará mentindo para si mesmo e sendo desonesto com as outras pessoas. Mas sempre há exceções. Algumas exceções podem ser feitas, mas em geral não é bom. Se você está no nível de Ajahn, pratica como Ajahn. E um Ajahn tem suas tarefas e responsabilidades: lidar com as pessoas, ensinar as pessoas e etc. A sua realidade agora é essa. É assim que funciona.
Acho que eu não respondi muito bem essa pergunta na ocasião às pessoas, mas estou respondendo hoje. É isso.