Inofensividade

17/07/2020
Publicado em Ensinamentos
17/07/2020 Mosteiro Suddhāvari

Palestra de Ajahn Kalyano, de Buddha Bodhivana Monastery, na Austrália. Traduzida por Thalita Scianni. Gravação original: https://youtu.be/7dA8K3CePrw.

O Buda sempre nos incentivou a praticar mettā. Olhando para os suttas, as palavras do Buda sobre amor-bondade – o Mettā Sutta – era dado aos monges que estavam indo para a floresta. Naquela ocasião estavam sendo atormentados pelo cheiro lançado por devas que estavam incomodados (com a presença deles). Então eles recitavam esse sutta e as condições melhoravam. O mesmo acontece com os animais, você tem que usar muita mettā, compaixão. Você vem para a floresta, mas eles moram ali. Eles provavelmente estavam lá antes de nós. Você não pode esperar que eles entendam o que estamos fazendo e de repente se afastem e nos deem espaço. Eles apenas virão e farão suas próprias coisas como sempre fizeram. Contudo, animais são bastante afiados em intuição. Eles não conseguem se comunicar muito bem, mas eles podem sentir o perigo. Depois de um tempo eles sentem que não somos perigosos, se não os atacarmos ou persegui-los, eles relaxam. Falando de um modo geral, eles tendem a relaxar e apenas continuar com seus afazeres e deixar você continuar com seus – e eles continuam com os deles.

Nós não caçamos e eles notam isso. Em outras propriedades, às vezes caçadores vão a essas propriedades e leva apenas uma ou duas vezes de alguém disparar uma arma e os animais entenderem. Eles entendem que é de seu próprio interesse ficar longe. Eles se lembram, então são menos propensos a frequentarem aquele lugar. Eles vão a qualquer lugar onde há florestas. Então, como nossos vizinhos têm florestas em suas propriedades, os animais vão até lá. Mas, geralmente, os animais não permanecem por lá, eles não querem passar muito tempo nessas propriedades porque eles se sentem menos seguros. Notam que há competição por parte dos animais domésticos, que tentam caçá-los, a atmosfera não parece ter a mesma segurança para eles. Ao passo que  aqui não há competição, eles podem comer o que quiserem, não caçamos, eles nos veem todos os dias e veem que não somos ameaça – na verdade, isso é a favor deles, porque eles conseguem notar que podemos protegê-los.

Os animais são assim, eles sentem onde é seguro, onde é perigoso, e agem de acordo. E assim, vivendo com os monges que moram aqui, ano após ano, eles sentem que somos seguros. Você pode encontrar um cervo e ele ainda berra, mas depois de berrar ele apenas continua o que estava fazendo, ele não corre quilômetros temendo por sua vida. Ele só faz seu barulho mas depois continua, sabendo que não tem que correr quilômetros para não levar um tiro. Mas, ocasionalmente, nossos caminhos se cruzam, literalmente. Você caminha por uma trilha e encontra algo, dá de cara com algo. Nessas situações mais imprevisíveis, apenas esteja atento, alerta e use mettā, então veja o que é apropriado. Em geral, ficar parado é a coisa mais fácil com um animal, você deixa o animal fazer os movimentos que ele quiser, se ele quiser fugir ou ir embora. Se for uma cobra, ela pode rastejar para longe. Você está sempre com o objetivo de não os provocar ou agitá-los, então não há realmente um problema.

E continue trazendo à tona mettā. Mettā leva à karuṇā – compaixão. Sabe, presos em suas formas, eles não podem realmente entender o Dhamma ou realizar muito mérito. Então você sente pena deles, talvez fiquem nessa forma por muitas vidas antes que o seu carma se esvaia. Você tem que aceitar que eles irão fazer coisas que são irritantes, porque não entendem o que estamos fazendo. Eles irão fazer barulhos, irão fazer cocô no lugar errado, irão fazer seu ninho em nossa cabana, como os camundongos jovens e as formigas fazem. Eles estão apenas seguindo seus instintos, não é um ataque pessoal contra nós. Nós compartilhamos o mundo com eles, temos que lembrar disso, nós compartilhamos o mundo.

Se você demonstrar mettā, se é gentil com eles, então eles respondem a isso. Você viu aqueles patos? Quando chegamos aqui, os patos simplesmente voavam para longe, eles estavam com medo, porque as pessoas costumavam atirar neles e outros animais os comiam. Agora estão muito mais relaxados e passeiam por aí. O mesmo aconteceu aos cervos, eles eram muito mais escassos, mas agora andam por aí.

Mettā, você também pode notar que mettā traz problemas. Se você é gentil com os animais, então eles ficarão mais por perto, então trarão um pouco mais de distração. Os cervos comem as plantas, os cangurus comem as plantas, os vombates comem as plantas. Mas talvez esse seja um preço baixo a se pagar, eles podem precisar de algumas árvores extras ou o que quer que seja, mas eles estão felizes e em paz, deixem eles. Outro problema com mettā é que você vê mais os animais, você fica um pouco mais perto deles, e talvez você esqueça que eles são animais, especialmente animais de estimação e alguns tipos de animais selvagens que às vezes ficam mansos. Nós demostramos mettā aos cangurus deixando-os comer, relaxar e viver no mosteiro. Nós não vamos tão longe a ponto de alimentá-los, porque então eles viriam o tempo todo e talvez andar pelos arredores da cozinha, e se você tem crianças ou pessoas que não são familiarizadas com animais, você pode ter problemas porque os animais podem se tornar agressivos ou querer comida e as pessoas não entendem… Então, com pássaros e cangurus você tem que ter um pouco de cuidado porque eles podem mudar e se sentirem ameaçados por alguém, ficarão agressivos porque são animais.

Mettā precisa ser equilibrada com sati e sabedoria, isso é o adequado. Realmente, pessoas são iguais, não? Com pessoas estranhas, basicamente você usa mettā, boa vontade, amizade, demonstra respeito, isso é o básico como ponto de partida. Então você conhece as pessoas melhor, talvez você possa ajudá-los se precisarem de ajuda, vocês podem se tornar amigos. Com algumas pessoas que você conhece, você pode não se dar bem, então deve ser cuidadoso porque vocês não têm o mesmo carácter, mas você ainda tem mettā e karuṇā com todos que conhece. Você deseja-lhes o bem, espera que eles progridam em sua prática, que sua vida seja bem sucedida, que tenham boa saúde. Esse é o seu desejo básico.

Você pode passar mais tempo com algumas pessoas e outras não, porque suas características são diferentes. Você apenas conhece essas pessoas, mas não faz muitas atividades com eles porque vocês não se dão bem juntos. Você tem que aceitar isso porque, devido ao carma, todo mundo é diferente. Então somos atraídos a algumas pessoas mais do que a outras, mas o nosso desejo básico para todos é de boa vontade. Desejamos que todos eles sejam felizes e tenham sucesso. Se eles já são bem sucedidos, que seu sucesso continue e que superem o sofrimento. Você continua colocando isso em prática.

Ao ajudar as pessoas com mettā, como vimos com os animais, você tem que aprender a fazê-lo habilmente. Você pode ter uma ideia: “Eu deveria ajudar essa pessoa. Eu posso ajudá-los. Eu posso dar-lhes algo. Eu posso dar-lhes alguns conselhos. Eu posso fazer algo para eles.” Mas essa é a sua ideia e seus pensamentos, e talvez seja uma coisa boa, mas às vezes entendemos errado, então precisamos ser capazes de ajustar. Às vezes a pessoa não quer nossa ajuda e a rejeita, outras, ela não demonstra gratidão. Então você tem que equilibrar um pouco mettā com a sabedoria. Esteja pronto para a reação das pessoas e também para observar como mettā está se saindo, talvez você tenha que ajustá-la e demonstrar mettā de uma maneira diferente, ou apenas esperar e ficar mais quieto porque, não importa o que você faça, não é aceito nem apreciado.

Uma forma como os preceitos – o treinamento do Vinaya – funciona, é que estabelecemos a intenção de seguir as regras, treinar com as regras, usando-as como uma maneira de treinar a nós mesmos. Portanto, se você firma essa intenção por respeito e fé ao Buda, respeito e fé em Ajahn Chah, você realmente quer seguir o treinamento, comprometer-se com o treinamento. Isso trará a atitude correta diante de uma situação em que você é tentado a quebrar uma regra. Você pode estar em uma situação onde você tem que fazer uma escolha, digamos que uma mosca o está incomodando. O que você faz? Se seu compromisso com o treinamento é forte, nunca é uma opção quebrar a regra. É sempre: “O que mais posso fazer nessa situação para resolver o problema? Mas eu não vou quebrar a regra.” Isso estabelece o processo de raciocínio correto, você procura uma maneira de lidar com esse problema: “Que solução posso encontrar para lidar com o problema, mantendo o Vinaya?” E cada problema terá soluções diferentes. Às vezes você tem que experimentar um pouco e aprender com a situação. Você deve usar diferentes reflexões para ajudá-lo a entender e lidar com a situação, também existem soluções práticas.

Nesta época do ano, temos as moscas de março saindo, elas picam e realmente machucam se você estiver ao ar livre, praticando meditação andando… Ontem nós estávamos trabalhando e muitas pessoas estavam sendo incomodadas por elas. Então, primeiro: talvez procurar um produto, um repelente de insetos que funcione com esse tipo específico de mosca ou ir temporariamente para dentro de casa, mudar de atividade para se afastar delas. Você pensa dessa maneira, você não pensa em matá-las. Você já está com esse pensamento desde o primeiro momento em que o problema surge, você não está pensando mais de outra maneira devido ao seu amor e ao seu compromisso com o treinamento, com as regras. Imediatamente você descarta as respostas mais negativas que um leigo poderia ter. Você pode inventar sua resposta criativa e bloquear coisas. “Eu não vou matar isso porque respeito a vida.” E você aprecia o que você está fazendo porque isso é uma decisão voluntária com base na compreensão de que todas as formas de vida – mesmo os insetos que picam ou irritam – todos os seres querem viver. Eles sentem dor e prazer como nós, em algum nível pelo menos, e por isso a resposta para o problema nunca seria matar. Isso também estaria abrigando uma intenção negativa em sua mente, trazendo raiva, aumentando sua tendência a ter mais daquelas intenções negativas se você as seguir, reforçando-as. Então, você toma a decisão: “Eu não vou seguir esse pensamento negativo por impulsos, mesmo que ele surja em uma situação de frustração, trabalhando ou andando em meditação.”

É irritante, então o pensamento de esmagar e destruir os insetos pode surgir, mas você imediatamente tem outro pensamento: “Eu não vou fazer isso!” Então, você tem que pensar: “O que eu posso fazer?” Às vezes tudo que você pode fazer é suportar por um tempo, você suporta o inseto irritante. A longo prazo, quando estiver mais criativo, você usa seu bom senso e sua inteligência e começa a ver como você pode lidar com esse problema de maneira que não mate, mas reduza a natureza irritante do inseto ou reduza o problema ao lidar com ele de maneira sábia, pacífica e não violenta. Sua mente sente paz, você se sente bem consigo mesmo. Você não mata, mas você pode escapar da natureza irritante e incômoda do inseto. Você não pensa em matar a peste, mas sim como evitar que eles entrem, ou recursos que você possa usar. Por exemplo, fora das nossas cabanas colocamos panos com óleo – isso é o que eu faço na minha cabana – coloco panos com óleo ao redor dos pilares. Isso funciona enquanto o óleo ainda estiver lá. Talvez depois de alguns anos, quando secarem, será necessário colocar óleo fresco novamente. Assim que você instalou o sistema, ele pode funcionar indefinidamente.

Você está sempre pensando dessa maneira. Ao invés de destruição, está pensando mais em prevenção. “Quais as causas que trazem pestes? Como posso lidar com isso?” E ocasionalmente você também tem que ser paciente com a situação, em vez de matar, apenas pratique a paciência. Muitas vezes, pragas e insetos são sazonais, você espera um pouco e eles vão embora sozinhos. Frequentemente você não tem que fazer nada. Já vi isso muitas vezes. Mosquitos vêm e você os espanta sem ficar chateado, sem machucá-los. Formigas vêm para te picar, você apenas tenta se desvencilhar cuidadosamente, varrê-las para longe ou se afastar delas. Se você se treina regularmente, você pode recorrer a esse treinamento sempre que precisar.

Se você for ficar em uma barraca na floresta, você já fez isso antes, você sabe qual é o problema. Você sabe como lidar com isso porque você já lidou com isso outras vezes, você apenas continua. O que ajuda também é refletir sobre porque você está praticando. Você sabe a vantagem de viver com simplicidade na floresta. Você tem reclusão. Você tem a chance de estar consigo mesmo. Talvez se aprofundar em sua meditação, ou apenas aprender coisas que você não aprenderia em outra situação. Esses benefícios fazem com que você aprecie a interferência, o aborrecimento dos insetos, a natureza perturbadora deles. Você também tem suas habilidades práticas, você aprende a usar mosquiteiros, repelentes. Temos muitos incensos, às vezes acendemos incensos na nossa trilha de meditação andando e deixamos a fumaça subir. Você apenas tem que pegar um punhado de incensos e colocá-los no caminho e depois de meia hora tem a fumaça e o cheiro que mantêm os insetos afastados. Existem algumas técnicas diferentes que você pode usar. Você apenas aprende como continuar aplicando-as quando precisar.

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