Renúncia traz liberdade

14/10/2022
Publicado em Ensinamentos
14/10/2022 Mosteiro Suddhāvari

Transcrição de palestra dada em março de 2022. Veja a gravação original nesse link: Renúncia traz liberdade

Uma coisa que as pessoas em geral não têm muito conhecimento a respeito é a relação entre contentamento e frugalidade. Às vezes frugalidade tem um aspecto de raiva. As pessoas às vezes são frugais porque elas têm avareza, são muquiranas, não sei como é que chama (risos). As pessoas às vezes são frugais não por sabedoria, mas por apego.

Contentamento… ser uma pessoa que se satisfaz com pouco. Ser uma pessoa que se satisfaz com pouco, de você estar facilmente satisfeito, já é um benefício em si porque você não precisa de muito para estar satisfeito, você não precisa de muito para estar feliz, para estar contente. Contentamento… o pessoal que tem contentamento está contente.

Uma coisa que as pessoas às vezes não estão cientes é que existe uma relação também com a liberdade quando você é uma pessoa facilmente satisfeita. Nos sutras é mencionada essa qualidade: “uma pessoa facilmente satisfeita”. O Buda elogiava essa qualidade. A pessoa experiencia maior liberdade do que antes, porque agora ela pode ir basicamente para onde ela quiser, ela não tem muitas restrições, não tem muitas exigências:

“Eu só posso participar dessa atividade se tiver isso, isso, isso e isso.”

“Eu só posso dormir num quarto se ele tiver ar-condicionado, tem que ter isso, tem que ter aquilo, tem que ter aquilo outro.”

“Só posso comer se a comida tiver assim, assim, assim, assado, não pode ser uma comida sem essas características.”

“Só posso vestir a roupa se ela for a última roupa da última moda. Tem que estar elegante, tem que estar assim, tem que estar assado, senão não, tenho coragem de sair na rua.” E também com relação às pessoas: o que é que você espera das pessoas. Se você é uma pessoa facilmente satisfeita, você não tem muitos problemas com as pessoas ao seu redor. As pessoas têm maior liberdade perto de você. Se você estabelece um relacionamento de amizade com elas, elas continuam te ajudando, a qualidade da forma como elas te ajudam melhora, não por você ter brigado com elas, por você ter exigido isso ou aquilo, melhora porque elas têm bem-querer por você, elas têm amizade por você.

As pessoas pensam por exemplo: “Eu tenho que exigir que as pessoas me tratem assim, eu tenho que exigir que as pessoas façam isso, desse jeito, dessa forma, de maneira correta, assim, assim, assado.” E aí as pessoas fazem, mas por medo. Medo de tomar bronca, medo de você brigar com elas, medo de você expulsar elas, o que quer que seja.

É uma coisa curiosa, às vezes, a gente conversa com outros monges – monges que são abades de mosteiros – muitos deles também relatam esse erro quando começam, quando recebem a função de líder do mosteiro. Eles querem colocar uma regra e todo mundo tem que seguir essa regra, e sempre que alguém faz algo errado ele dá bronca naquela pessoa. E aí o que eles começam a reparar é que as pessoas começam a errar mais, mais e mais… as pessoas começam a cometer mais, mais e mais erros porque o que acontece é que elas estão tensas, elas estão o tempo todo tensas e preocupadas: “Será que eu vou levar bronca?”, elas acabam fazendo coisas erradas sem perceber e sem intenção de fazer. Às vezes, quando você simplesmente ensina o modo correto de fazer e dá espaço para as pessoas cometerem erros, você percebe que as pessoas cometem muito menos erros.

Você acha que uma maneira para as pessoas não cometerem erros é dar bronca nelas e ficar de olho e criticando o tempo todo para elas ficarem atentas e não cometerem erros, isso depende do tipo de relacionamento que você estabelece com as pessoas, depende do local. Se é um local em que as pessoas já têm vontade de acertar, elas querem acertar, às vezes, funciona melhor você dar espaço para elas cometerem erros, porque aí, relaxadas e tranquilas, elas ficam mais eficientes. Às vezes também tem essa característica , quando você não tem tanta exigência com relação as pessoas, as pessoas ficam melhores ainda,  mas nem sempre é assim, né… Se é um relacionamento abusivo,  as pessoas estão querendo levar vantagem de você, querem levar o máximo possível dando o mínimo possível,  quanto mais você relaxa, mais as pessoas abusam, mas se é um relacionamento de amizade, de bem-querer, então você pode relaxar que as pessoas naturalmente vão ter desejo de fazer melhor. Então você tem que ter contentamento com relação às pessoas. Às vezes, através do contentamento, você consegue coisas ainda melhores do que você conseguiria através de pedir, exigir e coagir as pessoas.

Essa é uma coisa que se observa também com relação aos monges. Por exemplo, os monges vivem de esmolas. Se você fica pedindo para as pessoas: “Me dá isso, me dá aquilo, não está bom o suficiente, eu quero comida assim, eu quero comida vegetariana, eu quero comida vegana, eu quero comida fresca, eu quero comida que tem essa, essa e essa característica.”, aquilo vai ser um fardo para quem doa. Elas vão pensar: “Lá vem aquele monge, eu tenho que fazer um monte de coisa agora.” E a comida não sai tão boa! Quando você não tem exigência alguma: “Olha, a comida que você quiser… pode dar o que você quiser, a gente não tem exigência nenhuma, zero exigências, ofereça o que você quiser, o que for possível.” Aí a pessoa fica tranquila na hora de preparar a comida. O ato de preparar a comida não é um fardo, não é uma coisa pesarosa e tensa. E o resultado que você enxerga é que a comida está melhor ainda do que se você exigisse. Se você não exigir, a comida sai melhor ainda do que se você exigir.

Então, às vezes não é só o fato de que você experiencia bem-estar onde quer que você vá, você tem liberdade de movimentação porque eu não tenho exigência de que tipo de coisa tem que estar disponível no local onde ou vou. Qualquer lugar que vou está bom. Não tem exigência nenhuma, aonde quer que vá está bom. Então, você consegue frequentar qualquer lugar. E também às vezes você consegue coisas melhores do que você conseguiria exigindo. Se você estabelecer um relacionamento de amizade com o ambiente ao redor, você percebe que, na verdade, você consegue mais do que você consegue exigindo e brigando e oprimindo as pessoas.

Por exemplo, você consegue comer em qualquer restaurante. Não tem exigência com relação ao nível. Você pode ter alguma exigência no que diz respeito à sua saúde, mas não em termos de “A comida tem que estar boa a esse ponto. Se não estiver boa a esse ponto, eu não como.” E aí a quantidade de opções que você tem de restaurantes vai diminuindo. Mas se você tiver uma exigência bastante básica, tipo: limpeza. Não perfeitamente limpo, mas limpo o suficiente, aí você tem muito mais opções de onde você pode frequentar e isso também afeta o seu estilo de vida. Se você percebe: “Sabe, eu consigo estar bem com pouco.”, então a exigência de dinheiro, por exemplo, diminui bastante. O quanto de dinheiro você precisa para estar bem diminui bastante.

E aí o que acontece, às vezes você nem troca de emprego, às vezes você continua no mesmo emprego, só que agora não tem pressão. Você tem essa tranquilidade: “Se eu precisar largar esse emprego, tudo bem.” Você não está mais com a corda no pescoço: “Mesmo se eu trocar de emprego, se eu for demitido, tudo bem. Eu sei que vou estar bem mesmo com um emprego pior do que esse. Com um salário pior do que esse eu ainda vou estar bem.” Então você nem precisa sair do emprego, é só uma questão de agora não estar mais com a faca no pescoço. Você vai trabalhar tranquilo, relaxado. E aí, mais uma vez, se você vai trabalhar tranquilo e relaxado, você trabalha melhor ainda, você fica mais eficiente, as pessoas gostam mais ainda de você. E aí você ganha uma promoção: “Quando finalmente larguei a preocupação, ganhei ainda mais.” Às vezes acontece isso.

Também, na mesma linha, você pode achar: “Quer saber uma coisa, vou largar esse emprego. Não vale a pena, o salário que eles pagam não vale o estresse, eu não preciso desse salário. Se eu quantificar a quantidade de estresse e a quantidade de benefício, não vale a pena.” Aí você larga o emprego e arruma um que não pague tão bem, mas que não tenha tanto estresse, que seja mais satisfatório, que nutra em vez de sugar as suas energias, sugar o seu bem-estar. Ele nutre o seu bem-estar, nutre o seu nível de felicidade.

Você pode arrumar um emprego que te deixe feliz, vai pagar menos, mas você fica mais satisfeito fazendo aquele trabalho e seu nível de bem-estar aumenta. Às vezes você pode mudar de cidade, às vezes está morando numa cidade específica por causa de emprego, o emprego tem a ver com dinheiro e dinheiro tem a ver com prazeres. Então: “Se eu não tenho tanta necessidade de prazeres, eu não tenho tanta necessidade de dinheiro. Se eu não tenho tanta necessidade de dinheiro, eu não sou obrigado a morar aqui. Eu posso ir para um local mais espaçoso, mais tranquilo, menos trânsito, menos violência, clima mais agradável, acesso à natureza.” Então você tem liberdade de movimentação.

Ainda mais hoje em dia com a internet. Antigamente, quando eu era mais jovem, o que estou falando agora não era tão verdade. Você podia sempre argumentar: “Mas eu não vou ter acesso à cultura, eu não vou ter acesso à informação, a livros, a música, a filmes.” Imagine, antigamente você tinha que ir a uma locadora de vídeo para ter acesso a um filme. Ainda assim, se quisesse acessar um filme de qualidade, um filme de arte e tal, você tinha que ir a uma locadora específica, que com certeza não vai ter numa cidade pequena nem média. Só em cidade grande, em metrópoles você vai achar ‘uma’ locadora. Lá na Paulista tinham algumas, esqueci o nome dela… na Paulista tinha ‘uma’ locadora. Em São Paulo inteira devia ter duas ou três no máximo, mas hoje em dia com internet… Se você andar aqui ao redor do mosteiro, tem umas casas aqui atrás… isso aqui é perfeito! Se for aluguel, o aluguel é barato, tem eletricidade, tem conforto, tem acesso a internet de fibra óptica. O que você vai querer na cidade? Fazer o que na cidade grande, se você conseguir trabalhar em casa ainda por cima, nossa senhora! É muito mais eficiente em termos de custos, você tem melhor qualidade de vida.

Então, às vezes vale muito a pena. Mas você vai ter que abrir mão de todos os prazeres extras. Eu quero comer em um restaurante japonês, eu quero ir ao show de não sei quem, eu quero ir ao teatro não sei aonde, eu quero ir ao boteco da moda. Se você tem esse tipo de desejo por estímulos sensoriais, as suas possibilidades diminuem, você não tem muita liberdade de movimentação. Suas escolhas estão limitadas a certos ambientes.

Você pode observar isso, pelo menos eu posso observar, não sei se vocês conseguem, mas a gente que vira monge observa isso também. Os monges seguem centenas, centenas de regras de conduta e aí uma pessoa pode dizer: “Puxa, você não tem liberdade de fazer as coisas, você não tem liberdade. Você tem que seguir essas regras todas.”, mas já eu olho o contrário, eu falo: “Eu não, na verdade é você que não tem liberdade. O que acontece é que suas regras não são declaradas. As minhas regras são declaradas. Essas regras todas se aplicam, todas as regras de conduta que os monges seguem têm sempre um princípio espiritual por trás delas, como frugalidade, respeito, humildade, honestidade. São todos princípios espirituais que eu já ia seguir, quer tivesse regra ou não. As regras, na verdade, só aumentam ainda mais, potencializam ainda mais a prática desses princípios espirituais. São princípios espirituais que são bons, independentemente de haver regras de conduta ou não.” Então, não é um sacrifício tão grande assim para uma pessoa que tem esse interesse. Se é esse seu interesse na vida, não é um sacrifício muito grande, na verdade, pelo contrário.

Agora, quando eu olho a vida de algumas pessoas, das pessoas que vêm conversar comigo às vezes, você vê que vocês é que têm um monte de regras para seguir. Até na hora de oferecer a comida, às vezes os monges vão recolher comida como esmola, e você tem uma tigela e a pessoa coloca comida na tigela. E na hora de colocar salada:

“Não, não pode colocar aqui”,

“Porque não?”,

“Ah, vai ficar murcha a folha de alface!”

Eu não estou preocupado se a folha de alface vai ficar murcha ou não. Isso não é um assunto que ocupa minha mente, nunca! Nunca isso ocupa minha mente, a folha de alface. Já as pessoas têm essa regra: “Não, não pode colocar porque murcha a folha de alface!”, é uma regra não declarada. O café está frio. Pronto! Não pode mais beber o café, está frio, joga fora! Não pode beber esse café, é proibido. Vão morrer se beber esse café, as pessoas parecem que vão morrer envenenadas. Tem umas coisas que as pessoas têm tanto apego que vira um ritual. Café é um negócio que vira um ritual para a pessoa. Acontece várias vezes, eu tomo café para ajudar um pouco na digestão também. Aí eu falo:

“Tem um resto de café?”

“Tem.”

“Deixa eu beber.”

“Ah, não, não, o café está morno.”

“Tudo bem, eu só quero tomar um pouco para ajudar na digestão.”

“Não! Não pode! Eu vou fazer um café novo.”

Eu só queria um café… uma coisa tão simples! As pessoas têm regras… elas não conseguem sair daquele labirinto de regras que elas têm na cabeça delas. Elas nem param para perceber que isso é uma regra. Tem todo tipo de coisa: com relação à roupa, comida, sei lá!  Um monte de coisas… As pessoas têm regra para tudo! Só que são regras não declaradas, quem dita essas regras são os desejos, são os desejos e as aversões.

Então você vive um estilo de vida que reforça, aumenta, exacerba, deixa pior ainda, aumenta ainda mais os desejos e as aversões. Por mais que você tenha ilusão de que você tem liberdade, na verdade está aumentando ainda mais a sua prisão – mais regras a serem seguidas, mais deveres a cumprir, mais coisas proibidas a você fazer. Enquanto tiver ego envolvido, não há fim para isso. Não pense que chega num ponto que: “Ok, agora parou.”

Não para! Às vezes você vê essas notícias dos políticos roubando dinheiro. Então o cara tem uma carreira já de roubar dinheiro: dez milhões, vinte milhões, cinquenta milhões… Você imagina, há dez anos o cara roubou cinquenta milhões, se ele tivesse parado com cinquenta ele estaria livre. Ele ia para casa com cinquenta milhões de reais, ele ia ser milionário para o resto da vida. Mas ele não consegue parar, ele continua roubando até ser preso. Se somar tudo deu quanto? Duzentos e setenta milhões. Não dava para parar em duzentos? Se parasse em duzentos sairia livre. Não consegue, quando o ego está envolvido a pessoa vira escrava, ela não tem limite, não existe. Aí você investiga um pouco mais a vida da pessoa e descobre que ela é alcoólatra, ela usa drogas, é uma pessoa com todo o tipo de disfunção sexual, todo os sintomas de ego estão presentes. Então você fica ali: “Puxa vida, mas…” Não é uma opção, a pessoa vira escrava.  Ela pode dizer: “Eu tenho liberdade total, com esse dinheiro todo eu posso fazer o que eu quiser.” Mas não pode não, só pode fazer o que o ego manda. O que o desejo, a aversão, a vaidade, a ganância, a inveja mandam. Você não consegue fazer o que você quiser, você é o maior escravo de todos, ao ponto do ridículo! Como eu falei, a pessoa não consegue parar com duzentos milhões de reais que ela conseguiu de graça. Não consegue parar, tem que roubar mais dez. Vai roubando até ir para a cadeia, até ser humilhada publicamente, sair no jornal. É uma coisa tão fácil dela fazer e ela não consegue fazer. Não consegue!

O Buda nunca explicou exatamente o que é a iluminação, nirvana. Ele não explicava, as pessoas insistiam e perguntavam e ele não respondia. A única coisa que ele fazia com relação a isso: ele qualificava, dava exemplos, usava adjetivos que passavam uma ideia do que é nirvana, e um dos adjetivos mais comuns era vimutti, liberdade. Liberdade suprema, vimutti. Mesmo a ideia de liberdade que as pessoas têm não está bem alinhada com o Dharma.

Uma vez eu dei uma palestra, não lembro mais o conteúdo dela, mas o título que eu coloquei era… “Mesmo a bondade mundana aponta para o lado errado.” Então mesmo os conceitos bons, que a gente considera como bons, como liberdade, se você for investigar o que você entende como liberdade, é uma liberdade que na verdade joga as pessoas de volta à prisão do samsara. O que as pessoas entendem como compaixão é bem esquisito às vezes. O que as pessoas entendem como liberdade vai no sentido oposto do que os arahants, do que os Budas diziam. Mesmo esses conceitos, essas coisas que são entendidas como boas qualidades, às vezes tem que estar atento e olhar de novo: “Mas pera aí, o que você está querendo dizer com isso? O que nós estamos entendendo aqui como liberdade, como bondade?” E também conceitos que hoje em dia as pessoas entendem como ruim, é bom olhar de novo.

Quando a gente fala em humildade algumas pessoas veem uma conotação negativa nisso. Quando a gente fala em disciplina algumas pessoas enxergam uma conotação negativa nisso. Quando você fala em renúncia, em abrir mão, em contentamento, muitas pessoas criticam isso, pensam “Essas qualidades são dignas de crítica.” Elas acham que isso é ruim, não pode ter contentamento, tem que querer mais! Tem que lutar e querer mais! Se você olhar da perspectiva do que a pessoa está dizendo, você pode até mais ou menos concordar ou não com ela. Também quando você olha como é que o Buda contextualizava contentamento, você também pode concordar mais ou menos com isso, mas o fato é: isso tem que ter um contexto correto.

Por exemplo, o Buda também não ensinava as pessoas a ter contentamento com coisas ruins. Com más qualidades mentais. Não esteja satisfeito em ser uma pessoa ruim. O Buda ensinava as pessoas a ter vergonha, medo de fazer coisas ruins, ter vergonha de fazer coisas ruins. Então, não é para você estar contente em ser uma pessoa ruim, uma pessoa baixa, uma pessoa desonesta. Você tem que primeiro estabelecer a sua mente no caminho correto, e aí sim desenvolver a qualidade de contentamento. Contentamento requer uma fundação. Por isso que a gente sempre fala, sila é a base, a conduta moral é a base, primeiro você corrige o seu comportamento. Quando você estabelece uma linha de comportamento correta baseada em princípio espirituais, princípios da humildade, do respeito, do bem-querer, da honestidade, então você cria uma fundação de algo saudável. E tendo estabelecido bem essa fundação, aí sim você pode ter firmeza na ideia do contentamento. Aí sim isso vira uma coisa realmente correta, tem que ter um contexto.

Estou falando aqui em termos de contentamento que significa a não queimação por prazeres sensuais, a não aversão também baseada em prazeres sensuais. Se você tem desejo por um estímulo, você automaticamente desenvolveu aversão a tudo aquilo que não é aquele estímulo. No momento que você fala: “Eu quero tomar o sorvete x”, então, “Agora eu não quero nenhuma outra coisa, todas as outras coisas eu não quero mais, eu quero ‘isso’!” Junto com todos os desejos vem uma aversão. Se você é uma pessoa que tem um hábito constante de desejos, então você com certeza é uma pessoa que tem um hábito constante de aversão, de insatisfação, da não-satisfação. Consequentemente, a sua mente é muito facilmente irritada. É muito fácil surgir uma situação que não era aquilo que você queria. E é pior do que não ser aquilo que você queria, é justamente o que você não quer. É o oposto… é repulsiva a situação.

Às vezes a coisa não é o que eu queria, mas também não é uma coisa repulsiva. Se não tem Coca-Cola, tem só guaraná. “Ok, eu queria Coca-Cola, mas eu não odeio guaraná. Então está bom, eu tomo guaraná.” Agora não tem Coca-Cola, só tem tubaína (risos) – acho que o pessoal nem sabe o que é tubaína hoje em dia, só o pessoal da minha geração deve lembrar. Tem tubaína: “Ah, que nojo, eu não quero isso em hipótese nenhuma, leva isso embora daqui eu não quero isso de jeito nenhum.” E você fica com raiva: “Não tem nada para eu beber, vou ter que comer sem beber nada porque não tem nada…. Não tem nada que esteja a meu nível, só tem tubaína, groselha e Crush.” (risos). Só tem Crush, tubaína e groselha, e aí?  “Caramba, fiquei com raiva já, porque agora vou ter que comer sem nada para beber.” O que é desagradável, né. Então a pessoa fica com raiva. Tem gente hoje em dia que não bebe água, não sei se no Brasil tem isso, mas o pessoal que mora nos Estados Unidos estava me contando isso. Tem gente que não bebe água, tem aversão à água, ele só bebe Coca-Cola. O cara não consegue, ele sente nojo de beber água. A distorção vai a tanto que chega a esse ponto. A coisa está ficando cada vez pior.

Fique atento! Às vezes pare e se questione um pouco, porque as pessoas têm desejo de bem-estar, elas querem felicidade, elas querem bem-estar. Aí você busca bem-estar procurando mais recursos, mais conforto, uma situação mais agradável. Mas às vezes também você tem que olhar para dentro de si mesmo. Quanto que eu consigo fazer aqui dentro que poderia gerar bem-estar sem ter todo esse fardo envolvendo o mundo material, envolvendo as demais pessoas? Isso porque as demais pessoas são difíceis de controlar. Eu quero bem-estar, então eu quero que as pessoas me tratem assim, eu quero que elas falem dessa maneira, eu quero que elas se comportem dessa maneira. É difícil você conseguir que as pessoas ajam da maneira que você deseja. Você pode se perguntar: “Bom, o que é que eu consigo fazer que não depende dos outros, não depende do que os outros dizem ou fazem? Que não depende tanto de dinheiro ou prazeres sensuais/sensoriais?” Você pode perceber que existem coisas que você pode fazer aqui e agora, consigo mesmo. Você pode treinar a sua mente a ter contentamento, pode treinar a sua mente para estar satisfeita aqui e agora.

Um dos melhores exercícios para fazer isso é praticar meditação. Um dos grandes segredos da meditação é o contentamento. Você coloca a mente na respiração e fica satisfeito só com a respiração. Não tente entrar em samadhi, não tente alcançar a iluminação, não tente cessar os pensamentos, não tente fazer as distrações sumirem. Você coloca a mente na respiração e só isso. Aí você tem que ter firmeza nesse contentamento. Sempre que a mente tentar escapar: “Eu quero…” não, você não quer nada, pode ficar aqui mesmo, relaxa, fica aqui mesmo. Desenvolva uma atitude de contentamento, assim fica mais fácil. A mente busca distrações porque ela quer bem-estar. Se você conseguir sentir bem-estar na respiração, as distrações diminuem bastante. Fica bem mais fácil manter a mente focada na respiração. Uma das coisas que eu percebia bastante também em termos de praticar meditação: desconforto. A mente está acostumada aos pensamentos. Se você é uma pessoa que pensa freneticamente, como é o caso de oitenta por cento das pessoas hoje em dia, então o que acontece é: a mente se acostuma àquele ritmo, tem um certo som, os pensamentos têm um ritmo. As pessoas pensam em frases, a língua portuguesa tem um ritmo, a língua tailandesa tem outro ritmo, a língua inglesa tem um outro ritmo. Então, a mente fica viciada nesse ritmo, nessas frases. É como se fosse uma música que ela precisa ouvir constantemente. Quando você vai colocar atenção na respiração e tentar relaxar e apaziguar os pensamentos, relaxar a mente, só o contato com a respiração já é aversivo para a maioria das pessoas, porque não é o mesmo ritmo, é um ritmo lento – inspira, expira, inspira, expira –  não tem variação, é um ritmo monótono. É um ritmo constante, não tem variação, não tem o mesmo ritmo rápido das frases, das palavras. Consequentemente as pessoas ficam com aversão à respiração.

Um bom truque para conseguir concentrar melhor a mente é aplicar metta, é aplicar bem-querer à respiração. Muitas pessoas conseguem progredir com isso, elas aplicam bem-querer à respiração, uma atitude de amizade, uma atitude de amor pela respiração e isso apazigua essa aversão que eu acabei de mencionar. Aí fica mais fácil, a mente não foge tanto para distrações, ela encontra contentamento em estar observando, experienciando a respiração. Fica bem mais fácil meditar quando é assim. É uma coisa que é tão útil no dia a dia, no bem-estar do dia a dia, em abrir, ganhar liberdade, movimentação dentro da sua vida, como também está diretamente conectado ao caminho que leva à iluminação.

Voltando ao assunto anterior, as regras monásticas que os monges seguem também são assim. É um treinamento de qualidades, mas essas qualidades estão diretamente relacionadas às práticas que levam a iluminação. O Dharma é algo que leva à iluminação, o propósito do Dharma é esse. O propósito do Dharma não é autoajuda, ou melhorar a sociedade, resolver os problemas da injustiça social. O propósito do Dharma é levar as pessoas à iluminação. Coincidentemente, o caminho para a iluminação passa pela bondade, por aquilo que as pessoas hoje em dia entendem mais ou menos como bondade. Não há contradição entre bondade mundana, entre bondade no nível mais grosseiro, e o caminho para a iluminação. Até um certo ponto. Chega um ponto em que pode ser que haja contradição sim. Dependendo do ponto de vista das pessoas pode ser que haja.

Um dos paramitas que o bodhisatta desenvolve até a perfeição antes de alcançar a iluminação é o paramita da renúncia. É dito que ele renuncia a tudo, até ao próprio filho ele renuncia. Na última vida antes de alcançar a perfeição da capacidade da caridade, da doação, o bodhisatta doa o próprio filho. Ele dá o filho de presente, que é a coisa que as pessoas têm mais apego. O que as pessoas têm mais apego no mundo é o próprio filho, é a própria família. Então, para alcançar a perfeição da caridade, ele doa a própria família, ele dá de presente para uma outra pessoa. Que é algo que alguns podem julgar como falta de bondade, falta de amor, falta disso, falta daquilo, mas se você enxergar o quadro maior do que é que ele está construindo, você enxerga de que forma isso é benéfico. Onde é que isso se encaixa no propósito maior que ele tem em mente, que ele tem como objetivo.

Então é isso, só chamando atenção para esse fato: existem certas coisas que, ao contrário do que diz o senso comum, a noção normal das pessoas, existem certas qualidades que levam à liberdade: a renúncia, o contentamento, a frugalidade. São coisas que, na verdade, podem aumentar ainda mais a sua qualidade de vida. As pessoas acham que isso leva a piorar a qualidade de vida, porque quem decide o que é boa ou má qualidade de vida são empresas. Então contentamento não pode ser bom para qualidade de vida, tem que ser o contrário, desejar e comprar é que leva à boa qualidade de vida – porque elas vendem coisas. Dependendo de para quem você está perguntando, o que vai ser dito é um pouco diferente. É bom, é bom refletir a respeito dessas coisas.

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